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qualquer contexto, calibrando bem a acção e a omissão, mormente na
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dor física e na dor moral (como se dizia há cem anos ).
É tomando a sério a transcendência do indivíduo e a irredutibilida-
de do singular nos âmbitos cognitivo e epistémico que, no plano da
acção e da prática, se torna imprescindível a valorização e o desenvol-
vimento do nível prudencial da deliberação (principalmente em me-
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dicina) . Está ligado à obrigação de determinar e aprofundar o conheci-
mento do doente, de explorar a experiência à cabeceira do doente e de
criar uma taxinomia do adoecer e da dolência: é, afinal, o que a logote-
rapia desde a Grécia (psiquiatria antes de Viktor Frankl) vem fazendo
para os estados de alma e para as respostas emocionais à doença
somática. Capitalização no talento natural que temos de reconhecer
– antes de conhecer – o particular.
3.2. A passagem dos limites? 36
Em Pureza e Perigo, Mary Douglas mostra como o corpo humano
(presente ou ausente) é bom para pensar, referindo que é um equiva-
lente universal: há um corpo simbólico que integra atributos incorpó-
reos e propriedades materiais. O corpo físico é um microcosmo da
sociedade, “[...] é o modelo por excelência de todo o sistema finito.
Os seus limites podem representar as fronteiras ameaçadas ou precá-
rias. Como o corpo tem uma estrutura complexa, as funções e as
relações entre as suas diferentes partes podem servir de símbolos a
outras estruturas complexas. É impossível interpretar correctamente
os ritos que utilizam excrementos, leite materno, saliva, etc., se
ignorarmos que o corpo é um símbolo da sociedade e que o corpo
humano reproduz, a uma pequena escala, os poderes e os perigos
Para tratar os doentes jamais curei de saber se eram hebreus, cristãos ou sequazes da lei maometana.
Não corri atrás das honras e das glórias e com igual cuidado tratei dos pobres e dos nascidos em
nobreza. Nunca provoquei a doença. Nos prognósticos disse sempre o que sentia. Não favoreci um
farmacêutico mais do que outro, a não ser quando nalgum reconhecia, porventura, mais perícia na
arte e maior bondade de coração, porque então o preferia aos demais. Ao receitar sempre atendi às
possibilidades pecuniárias do doente, usando de relativa moderação nos medicamentos prescritos.
Nunca divulguei o segredo a mim confiado. Nunca a ninguém propinei poção venenosa. Com minha
intervenção nunca foi provocado o aborto. Nas minhas consultas e visitas médicas femininas nunca
pratiquei a menor torpeza. Em suma, jamais fiz couza de que se envergonhasse um médico preclaro
e egrégio. Sempre tive diante dos olhos, para os imitar, os exemplos de Hipócrates e de Galeno, os
pais da medicina, não desprezando as obras monumentais dalguns outros excelentes mestres na arte
médica. Fui sempre diligente no estudo e por tal forma que nenhuma ocupação por mais urgente que
fosse me desviou da leitura dos bons autores; nem o prejuízo dos interesses particulares, nem as
viagens por mar, nem as minhas frequentes deambulações por terra, nem por fim o próprio exílio, me
abalaram a alma, como convém ao homem sábio. Os discípulos que até hoje tenho tido em grande
número e em lugar dos filhos tenho educado, sempre os ensinei muito sinceramente a que se
inspirassem no exemplo dos bons. Os meus livros de medicina nunca os publiquei com outra ambição
que não fosse contribuir de qualquer modo para a saúde da humanidade. Se o consegui, deixo a
resposta ao julgamento dos outros, na certeza de que tal foi sempre a minha intenção e o maior dos
meus desejos.” Feito em Salónica no ano do mundo de 5319 (1559, da nossa era) (de Médico
Hospitalar, 1998; segundo tradução de A. da Rocha Brito publicada originalmente em Coimbra
Médica, 4, 1, 1937).
34 . R. Rey, 1993/2000.
35
. Tópico que conclui este estudo.
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. As secções 3.2 a 3.6 são, simultaneamente, o conteúdo aproximado da primeira Unidade Pedagógica
da cadeira Arte da Medicina-I da UBI, leccionado por mim desde 2001/2002 (docente responsável
Prof. Doutor José Manuel Pereira de Almeida) e o conteúdo desenvolvido de um Seminário em torno
do Corpo, realizado em 2003 na cadeira de Bioética da ESSUA (orientado pela Prof. Doutora Florinda
Martins); a ambos e a ambas as instituições (que eventualmente irão publicar as respectivas versões)
o meu agradecimento.
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