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engloba sensações, sentimentos, paixões [...]. Na sua acepção original,
ideia tem o mesmo significado [...] um significado radicalmente diver-
so do que hoje chamamos ideia, i.e., de representação, representação
de uma árvore, de um triângulo, de Deus [...]. A ideia cartesiana [...]
é tudo menos o aspecto do que se nos descobre ante a luz da
Ekstasis, tudo excepto o inteligível [...]. É, por excelência, a ideia ou
o sentimento da dor [...] ‘Par le nom d’idée j’entend cette forme de
chacune de nos pensées par la perception immédiate de laquelle nous
avons connaissance immédiate de ces mêmes pensées (Descartes:
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Réponses aux Secondes Objections...)’” .
O moderno acompanhamento médico do doente crónico e do
doente moribundo deve muito a Cecily Saunders e a Elizabeth Kübler-
Ross. A primeira pela proficiência e inteligência na terapêutica palia-
tiva e no controlo de sintomas de fim de vida, mormente do medo, do
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desespero e da dor . Deixou obra impar primeiro no St Joseph
Hospice, depois em St Christophers e em todo o mundo. A segunda,
assistindo e apoiando dia e noite muitos doentes na fase final da vida,
descreveu, em On Death and Dying, a luta que travou contra o
“sistema” e contra as hierarquias, no seu esforço por cuidar com
humanidade e profissionalismo dos doentes terminais. Kübler-Ross
constatou que a generalidade dos seus doentes passava por uma
sucessão de estados quando confrontados com o diagnóstico da doen-
ça “maligna”, com o prognóstico “fatal” (primeiro o doente denega e
isola-se, a angústia e a revolta são dominantes na fase seguinte, segue-
se um período de tentativa de negociação e compensação, deprime-se
e antecipa o luto a seguir e por fim cai ou atinge um estado de maior
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paz interior e aceitação) .
Dar o nosso tempo, dar o tempo a outrem, a quem nos chama
– é, julgo, uma condição necessária de verdadeira comunicação e
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comunhão com estes doentes . Ao permitir ao doente, através do
controlo dos sintomas, a manutenção da identidade do corpo próprio,
previnem-se os maus-tratos passivos e os maus-tratos por omissão, o
abandono, descobrindo-se quão vital e difícil é dar o tempo: “[...] c’est
en effect dans le champ de la parole que la nouveauté est la plus
significative, par-ce que se manifeste un certain rapport au temps
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[...]” . Descobre-se quão importante é o campo da palavra e quão
significativo é saber/querer dar o tempo, ao permitir ao doente agora
sem queixas excruciantes, a rehabitação do seu corpo, a recuperação
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da dignidade, a reapropriação do presente e, até, do próprio morrer .
Duas indeterminações gritantes dificultam a condição de médico-
cirurgião e condicionam a medida e o objecto da sua acção. Provêm
148 . M. Henry, 1963/1990, p. 64s.
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. C. Saunders.
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. Continua a ser plenamente actual (e mais urgente entre nós) a norma do Conselho da Europa de 1991
que aconselha a adopção de cuidados globais ao doente avançado e a criação da medicina dos
cuidados paliativos. Esta prestação deve caber a uma equipa multiprofissional, e não dispensa a
presença de um médico responsável de e por cada doente.
151 . Temática que Lévinas trouxe para a ética e tomada dos belos e incisivos trabalhos de Cadoré e de
Malherbe.
152 . Cadoré, 2001a, p. 650; Cadoré, 2001b.
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