Page 10 Volume 11, Número 3, 2003
P. 10
Dor (2003) 11
Assim, além da vertente puramente assisten- aliança e, no caso particular da dor, essa alian-
cial, base fundamental do nosso trabalho, tem ça além de bela pode ainda ser benéfica.
procurado a nossa unidade, desde sempre, E, por último, uma palavra para os nossos doen-
empenhar-se na divulgação da sua experiên- tes, ao fim e ao cabo, a razão da nossa existência.
cia, sendo campo de estágio de grande quan- E sobre eles permitam-me que vos conte uma
tidade de colegas, que hoje estão à frente de pequena história.
unidades de dor de grande mérito, muitos dos É a história do Sr. Carlos, nosso doente, já
quais tenho o gosto de ver presentes, o que, falecido.
naturalmente, muito me honra e sensibiliza. O Sr. Carlos chegava ao serviço sempre muito
O estabelecimento de um protocolo com a cedo (para mim era sempre muito cedo), vestia
Faculdade de Psicologia e Ciências de Educa- uma bata branca atada com uns atilhos à frente
ção da Universidade Clássica de Lisboa, desde que deixava antever um peito emagrecido e
1983, veio constituir, também, um elo de liga- esperava calmamente que o chamassem.
ção com o ensino pré-graduado, havendo já Era um homem alto e magro, tez morena, que
em marcha contactos no sentido de uma mais irradiava um certo ar de nobreza e dignidade.
estreita colaboração com a Faculdade de Ciên- Era da nobreza, provavelmente, que lhe vinha
cias Médicas da Universidade Nova Lisboa, aquele gosto pelo fado, que se lhe punha a
que espero, a breve trecho, ver concretizada. tocar no gravador quando entrava na sala de
Também, a nossa colaboração com a Escola tratamentos e que ouvia enlevado embora fosse
Superior de Enfermagem de Francisco Gentil quase sempre o mesmo.
tem-se processado regularmente bem como Com dignidade suportou todos os desaires
com outras escolas, sempre que solicitados. da sua longa doença, como se tivesse feito as
Tem sido, também, nossa preocupação trans- contas com a vida e considerasse todas as
mitir e colher experiência com os colegas da dívidas saldadas.
Medicina Geral e Familiar. Assim, colaborámos Falava pouco.
em todos os cursos de actualização levados a Foi, pois, com alguma surpresa que um dia
cabo pelo Instituto de Clínica Geral da Zona ao passar me perguntou:
Sul, e estamos sempre disponíveis para acções – O Sr. Dr. gosta de pássaros?
de formação que envolvem actualizações sobre – Sim, respondi, mas porquê?
dor, bem como colocar a nossa unidade ao – Deixe estar que lhe hei-de arranjar um
dispor de estágios ou troca de informações. rouxinol. Cantam muito bem, acrescentou.
Julgamos que é importante esta estreita cola- – Mas como é que o Sr. Carlos vai arranjar
boração com a Medicina do Ambulatório e os um rouxinol, perguntei.
Cuidados Continuados, já que é a esse nível que – Sou passarinheiro, e a conversa ficou por ali.
se pode actuar de uma maneira mais abrangen- Passado algum tempo, já nem me lembrava,
te, numa verdadeira medicina paliativa. ao entrar (sempre depois dele, naturalmente)
Estas Jornadas vão ser para nós, pois, um colocou-me nas mãos uma caixa de cartão com
desafio e um estímulo. uns buracos e disse:
Desafio à nossa capacidade de sermos ca- – Aí estão os rouxinóis; agora espero que cantem.
pazes de vos transmitir um pouco da nossa Peguei na caixa e sem saber bem o que fazer
experiência, mas também um estímulo para deixei-a pousada num canto do corredor e
resistirmos a maus ventos ou marés que por- esqueci-me completamente.
ventura nos desviem da rota que traçámos. Já a manhã ia longa quando, no gabinete,
A sua presença, Sr. Ministro, bem com dos oiço um alarido alvoraçado de quem tenta de-
outros elementos da Administração, é para nós sesperadamente escapar.
motivo de grande satisfação por acreditarmos que Espavoridas, umas avezitas esvoaçavam pelo
sejam quais forem as estratégias que se queiram corredor até encontrarem uma janela aberta por
imprimir ao sector da saúde, o doente e toda a sua onde fugiram em direcção ao céu azul e límpido.
envolvência serão sempre o centro das atenções. Eram os rouxinóis.
Queria agradecer o todos quantos contribuí- Nunca soube como saíram nem nunca tive
ram para estes 25 anos. Colaboradores de coragem de contar ao Sr. Carlos que os rouxi-
todas as áreas, amigos que em nós acredita- nóis tinham fugido.
ram. Seria fastidioso e porventura injusta qual- O que sabia era o que me esperava sempre
quer omissão. Espero que me compreendam e que com ele me cruzava:
acreditem que para nós todos foram únicos e – Então Sr. Dr. o rouxinol já canta?
preciosos. – Ainda não, Sr. Carlos.
Queria, também, agradecer aos nossos pa- – Deixe lá, Sr. Dr. que ainda acaba por cantar.
trocinadores, sem os quais muito dificilmente É com estas palavras de esperança que termi-
estas Jornadas teriam lugar. É uma afirmação no a minha intervenção nesta sessão de abertura.
de apreço que muito nos sensibiliza. Esperança de sermos capazes, mesmo nos
DOR artistas que quiseram colaborar nas nossas momentos de maior desânimo, de esperar que
Um agradecimento muito especial para os
algum rouxinol cante mesmo que nunca venha
10 Jornadas. Arte e medicina sempre fizeram boa a cantar.