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O clínico antigo acreditava ser capaz de identificar ou de inven-
tar a boa ocasião para intervir (era um inventor occasionis),
definindo a arte como saber ou ciência da constituição (compleição
ou corpo/espírito) individual, saber aplicado com medida e oportu-
nidade. Galeno, Ibn Sin (Avicena), Arnau de Vilanova, Francisco
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Sanches e muitos outros insistiram neste ponto . Um reflexo posi-
tivo desta ideologia, a tradição da casuística, vem da primeira
Renascença no Norte de Itália – do diagnóstico e do prognóstico
nos relatos clínicos regulares (os consilia) – e reflectiu a crença
numa razão prática, numa era em que os clérigos ainda não tinham
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sido proibidos de exercer medicina .
A verdade de enunciados práticos e singulares assenta na experi-
ência directa do sujeito agente e parte muitas vezes da analogia da
experiência, da identificação de casos típicos, dos exemplos anterio-
res. Escora-se, segundo alguns, em alguns valores seminais e em uns
quantos conceitos imediatos, quase absolutos, a que teremos acesso
em primeira pessoa, por exemplo, mesmo/outro (um ser-como-eu/um
estranho), prazer/dor, simetria/proporção, excesso/defeito, mentira/
verdade, bem/mal (ou bondade/crueldade), etc. Cresce com a imagina-
ção moral, a calibração do agir, a finura de espírito com que se atenta
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nas circunstâncias e nos detalhes (Deus está no pormenor) .
3.4. Indicadores somáticos
Conjecturo que no decorrer da história da medicina, a partir de
alguns modelos ou imagens germinais, foram reiterados e reproduzi-
dos os diversos modelos de inteligibilidade da prática clínica relevan-
tes para a operação da evidência e para a formação da prova, e,
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portanto, determinantes maiores da fixação da crença . É possível
classificá-las segundo a sua origem nos órgãos (subsistemas sensoriais
ou perceptivos) pertinentes do corpo humano. Em conformidade, as
figuras ou metáforas originárias e os principais tópicos ou lugares que
contribuíram para a definição e a conservação da heterogeneidade do
espaço clínico podem ser esquematizados, em primeira aproximação,
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através do seguinte quadro :
52 . São sete as coisas naturais (res naturales) fundamentais da fisiologia galénica que os clínicos deviam
considerar: os elementos, as compleições, os humores, os membra ou partes, as virtudes (ou poderes
animais, vitais e vegetativos), as operações (funções) e o espírito (spiritus). Para Aristóteles apenas
existia uma parte ou membrum principal, o coração; para Galeno quatro, além do coração, o fígado,
o cérebro e os testículos. A questão não era meramente escolar e teórica, pois para diagnosticar a
afecção de uma parte interessava sobretudo a parte próxima ou proximal: é uma manifestação do
fígado ou do cérebro?; é primária ou subsidiária? A parte principal e fundamental – o coração (o
centro e governo quer do corporal, quer do emocional) estava para além dos poderes da arte.
53 . Mas os frades da ordem de S. Camilo, ordem dedicada ao acompanhamento e ajuda aos moribundos, ainda
exerciam clínica no século XIX e, significativamente, davam especial valor à presença física junto ao leito
dos doentes e ao seu tratamento médico, antes da administração dos sacramentos (segundo consta das suas
Regras de 1803, publicadas em Lisboa; agradeço a informação ao Dr. A. Lourenço Marques).
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. Este esforço de imaginação condiciona todo o momento da compreensão, determina o agenciamento
e a responsabilidade (fundando a liberdade), representa inteligência ou idiotia moral: temos que
imaginar as consequências de cada acção. Por isso, quando escolho, escolho-me – evidência que se
dá nas disciplinas de acção. Vide Marques, 2003a.
55 . Estudei este tema em Marques, 2002, seguindo, em especial, a obra de F. Gil. Vide F. Gil, 2000.
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. Estranhar-se-á que se fale da caça, mas em Da Arte e em Preceitos, dois tratados hipocráticos tardios,
esta é a metáfora da relação entre a observação e o raciocínio clínico.
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