Page 28 Volume 9, Número 4, 2001
P. 28
Dor (2001) 9: 27-28 J. Fernandes: Uma outra visão da dor: SIDA – Que dor?
SIDA – que Dor?
Luis Filipe Fernandes
Era uma vez, um reino à beira mar plantado, cujos escondidas, vulgarizando-se o consumo colectivo, com
habitantes, pessoas trabalhadoras, religiosas e simpáti- os mesmos instrumentos.
cas, com fama de libido na guelra, ocupavam os seus Os anciãos começaram a notar que a sua aldeia,
tempos livres a ouvir fado e a dançar folclore. outrora pacata, se tornava mais barulhenta, conflituosa,
As crianças, na escola, aprendiam como ter ou não menos solidária e que os campos e casas andam a ser
ter filhos, quer fosse de lado, por cima ou por baixo, pilhados.
enquanto que os jovens adultos, militares aguerridos, A corte alerta os curandeiros para se interessarem
combatiam em reinos distantes. por esta epidemia e logo como formigas eles aparecem,
Os mais velhos perceberam que não podiam alimen- montando as suas tendas no largo da aldeia. Uns falam
tar tantas bocas, não podiam ter tantos filhos, alguma muito, outros só dão comprimidos, outros dizem o que
coisa tinham que fazer, mas cedo notaram que numa se deve e não deve fazer e ainda outros incitam as
aldeia como a deles tudo se vinha a saber. forças do além.
Este reino despreocupado foi, numa cinzenta manhã De comum, todos achavam que eram os donos da
de outono, acordado pelo repicar dos sinos. Em passo verdade, que o que faziam era melhor do que o outro
apressado, todos se reuniram no adro da igreja, onde propunha e que e por isso, o melhor era estarem de
vieram a saber que alguém tinha morrido; foi um amigo, costas voltadas, uns para os outros.
tinha tido uma coisa estranha no pulmão, que alguns A corte, preocupada, abre os cordões à bolsa e logo
diziam ser uma pneumonia. aparecem sapateiros, agricultores e ferradores, também
Com dor e angústia no peito, voltaram às suas casas. prontos para ajudar.
Algum tempo depois, logo se alegraram, ao fundo da Outros, ainda mais beneméritos, reúnem-se em clu-
aldeia ouviam-se o tocar dos tambores e trombetas, era bes e associações, apregoando o seu saber, muitas
o fim da guerra. vezes numa linguagem não compreendida, mas nas
Voltaram os jovens guerreiros, que trouxeram novos horas vagas, porque há família em casa e é preciso
hábitos, já não era só o vinho que aquecia as noites trabalhar para a sustentar.
frias e dava de comer ao povo, mas agora também, No entanto, num dia de festa para jovens, parece ter
algumas substâncias, que diminuíam a dor, alimentavam nascido uma nova esperança, quando um elemento da
o espirito e os tornavam mais alegres a extrovertidos. corte anuncia que ia aparecer um comprimido que, se
Trouxeram também, uma má noticia, pelas terras tomado a seguir a uma relação de risco, não haveria
onde combateram: andava uma doença estranha, que problemas. Os jovens respiraram de alívio, tinham aca-
ninguém conhecia muito bem; falava-se que tirava a bado as preocupações.
energia e que acabava por matar, mas que era uma Mas a realidade era bem diferente, as pilhagens
doença dos homossexuais e das prostitutas. continuavam, as masmorras estavam a abarrotar, as
Os homossexuais logo foram excluídos da aldeia; pessoas morriam e a aldeia andava cada vez mais
quanto às prostitutas, eram um mal menor. triste, mas os vendedores ambulantes, cada vez mais
No entanto, cedo perceberam que os excluídos en- ricos, lá continuavam o seu trabalho, com mais clientes.
contraram formas de se proteger e poucos adoeceram, Mais uma vez a corte decide dar uma ajuda e fornece
enquanto que, até alguns nobres, muito bem casados, os instrumentos para que sejam usados individualmente.
acabavam por sofrer desta dor. Mas, num banco do jardim, um velho pergunta a um
Vindos de outros reinos, os vendedores ambulantes, grupo de jovens que continua a utilizar, os mesmos
que antes só traziam tecidos e especiarias, apareciam instrumentos, porque não vão à farmácia, levantar um
cada vez em maior número a oferecer aquelas substân- para cada um.
cias milagrosas que, segundo eles, até faria ressuscitar Rapidamente lhe respondem que a substância é
os mortos, tal era o seu poder. cara e não dá para desperdiçar. O velho questiona-se:
Estas substâncias que se podiam fumar ou injectar então porque não lhes dão, as que eles usam. Até hoje
logo se tornaram de uso frequente, mas como, eram ainda não teve resposta.
proibidas pela corte, compravam-se e consumiam-se às Continuando a abrir os cordões à bolsa, no apoio a
projectos, na grande maioria inespecíficos, desinseridos
da realidade e desarticulados, por vezes com benefíci- DOR
os deste ou daquele sector, a corte, de uma forma
Psiquiatra - Consulta de Dor do Centro Hospitalar do
Funchal rápida e pouco profunda, tem então a ideia de descri- 27