Page 5 Volume 11, Número 2, 2003
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Editorial II


O desafio da DOR



Deolinda Lima





Ao contrário do que poderia parecer inquestio nável, o Embora uma das principais razões para este estado de
facto de a dor se impor sempre como um problema de saúde coisas seja o carácter peculiar da investigação em dor, que
a quantos lidam com o deslindar dos mecanismos que lhe facilmente ultrapassa o de investigação pura em Neurociên-
estão subjacentes (sejam eles os investigadores ditos “bási- cias para se constituir em investigação de um problema de
cos” ou as entidades financiadoras) tem contribuído mais saúde, não lhe são alheias circunstâncias de todos conheci-
para retardar o progresso nesse domínio do que para a das, tais como a definição de prioridades pelas Instituições
descoberta das tão almejadas soluções terapêuticas. Esta a que detêm a capacidade de financiamento e a valorização
conclusão a que facilmente se chega quando se comparam da investigação aplicada ou das relações com a Indústria.
os conhecimentos alcançados sobre o sistema visual, audi- Julgo ser a altura de deixarmos de falar em “investigação
tivo ou mesmo táctil, para não sair do domínio sensorial, e o aplicada” e passarmos a incluir no nosso léxico “aplicações/
ponto em que nos encontramos no referente ao sistema aplicadores da investigação”. Quem investiga deve perse-
nociceptivo. É um sistema complexo, dirão alguns, altamente guir o gosto pelo saber, seja ele qual for, e estar atento a
imiscuído noutros sistemas neuronais com os quais se rela- todas as questões que se lhe levantam, pertinentes ou não,
ciona de forma permanente e dinâmica, ou, opinarão outros, com a perseverança indispensável para encontrar as respos-
falho de estruturação anatómica clara, de perfeita segrega- tas mesmo quando é necessário esperar pelas ferramentas
ção, em termos de estrutura e localização, dos vários com- adequadas ou promover a sua construção. A investigação
ponentes neuronais. Embora ambas as afirmações sejam enquanto procura do saber é sempre “fundamental”, e é
correctas, não bastam como explicação para o atraso senti- fundamental que assim seja para que o saber ocupe a
do nesta matéria no momento presente, em particular se posição de relevo que merece no processo científico. Aplica-
atentarmos no não menos complexo, e no entanto, bem ção da investigação acontece quando, movido ou não pelas
melhor conhecido, processamento auditivo ou visual, e no circunstâncias, alguém, o próprio investigador (porque não)
que de proveito prático se tem retirado desse conhecimento. ou quem melhor conhece o campo de aplicabilidade, desco-
Sucede com frequência em áreas como a Biologia (o bre que o conhecimento adquirido, aquele preciso saber,
mesmo já não se aplica à Engenharia), e parece ser isso o pode ser utilizado para um determinado fim.
que neste campo testemunhamos, que a definição clara de É este o desafio que a investigação em dor nos coloca:
objectivos num processo de investigação limita a capacida- tentarmos ignorar, nem que por períodos curtos, que aquilo
de para avaliar dados e elaborar hipóteses fora do contexto que procuramos saber pode vir a ter alguma utilidade, para
pré-definido, aquele em que todo o processo se deve desen- nos dedicarmos à pesquisa desinteressada; conseguirmos,
rolar de modo a atingir os fins delineados. Facilmente, por- mesmo assim mantermo-nos tão próximo dos “aplicadores”
tanto, são ignorados factos, como tal relevantes para a que nada do que de útil nos saia porventura das mãos possa
compreensão do objecto em estudo, tanto por não serem ser desperdiçado. Dos “aplicadores” exige-se paciência e
percebidos ou valorizados, apesar de revelados pela expe- compreensão para nos manterem no seu círculo coloquial
rimentação, como por a pesquisa não admitir desvios ao apesar das tão grandes diferenças de linguagem. Talvez daí
traçado estabelecido sob pena de nos afastarmos da meta nasça um Esperanto que nos aproxime definitivamente e
a atingir a ponto de a perdermos de vista. torne cada vez mais profícua esta relação.


















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