Page 6 Volume 10, Número 1, 2002
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Dor (2002) 10 A. Gonçalves: Aspectos Psicológicos da Dor Crónica


Aspectos Psicológicos da Dor Crónica




A. Gonçalves






A dor é uma experiência universal. Segundo a defi- A sensação é apenas um dos elementos estruturais
nição da International Association for the Study of Pain, da percepção da dor que se encontra intimamente
a dor é uma experiência sensorial e emocional desa- associado ao componente nociceptivo da experiência
gradável, associada com actual ou potencial lesão, ou da dor. Para termos conhecimento da dor, temos de ter
descrita em termos de tal lesão. Neste aspecto, é sensação, sensação esta que é produto de um estímu-
fundamental encarar a dor como experiência sensorial lo físico ou psíquico que activa receptores que trans-
e emocional e não exclusivamente sensorial nocicepti- mitem a informação codificada até ao sistema nervoso
va. Por outro lado, afirma-se que a dor é experiência central. Porém, para termos a experiência de dor, é
desagradável e, como tal, é sempre subjectiva e de- necessário algo mais. O homem tem de estar consci-
pendente do estado biopsicológico e social do indiví- ente, pois se estiver inconsciente, por exemplo através
duo. Assim, o estado actual da arte de abordar e tratar da anestesia geral, não sentirá a dor, apesar dos
a dor reside na capacidade de avaliar a dor biopsicos- circuitos nociceptivos estarem íntegros. Se a experiên-
social. cia de dor apenas surge a quem está consciente,
Para tal, temos de compreender a complexidade a então teremos de aceitar que a experiência de dor não
que nos referimos quando usamos um termo tão sim- está isolada, mas sim interdependente, de toda a
ples como dor. actividade cerebral e mental. Assim, talvez possamos
A palavra dor deriva do termo latino poena, que compreender por que inúmeras situações com activi-
significava punição. Ao longo dos tempos, a dor tem dade psíquica própria, como o desporto, a guerra ou
sido alvo de conceitos e teorias diversos. Inicialmente práticas religiosas, podem igualmente alterar qualitati-
considerada o oposto de prazer, o coração era o seu va e quantitativamente a experiência de dor. Conse-
centro, e o sangue, a sua vida de comunicação. Mais quentemente, a experiência de dor é individual, tem
tarde, o cérebro tornou-se o seu centro, e a transmis- continuidade entre o presente e o passado, não é
são feita por tubos neurais, desde a pele até ao estática, tem intencionalidade e constitui-se na nossa
cérebro. Mais recentemente, assistiu-se à introdução actividade mental (Fig. 1).
da teoria do portão de controlo, à aceitação da influên- Embora a dor esteja geralmente associada a uma
cia dos factores psicológicos e à percepção de que a lesão bem identificada, por exemplo, a fractura de um
dor é o resultado de um processo biopsicológico muito osso, é importante referir que dor não é lesão, repor-
complexo. tando-nos, mais uma vez, à definição da IASP em que
Em termos genéricos, a dor deriva de uma cadeia a dor pode ser descrita em termos de potencial lesão.
de acontecimentos, regra geral, iniciada por um estí- O paciente pode descrevê-la como uma fisgada, quei-
mulo nociceptivo que é alvo de actividade mental de madura, pancada, peso, entre outros termos que são
prospecção, discriminação e eleição, resultando numa resultado de elaboração cognitiva para descrição de
percepção primária predominantemente sensorial (co- qualidades da dor.
nhecimento sensorial), revelada pelas características Vejamos, por exemplo, a dor do amputado. Esta é
do local, da intensidade da dor, e que funciona como localizada e descrita em termos dessa lesão e refe-
um componente mais passivo, de captação sensorial e rida a uma parte do corpo que é virtual, o que revela
imediato da percepção. É necessário salientar que, ao que a experiência da dor ocorre no cérebro. Noutro
cérebro, chegam uma infinidade de informações inter- exemplo, concretamente na distrofia simpática refle-
nas e externas, e que este tem a capacidade de xa, pensamos que os mecanismos centrais cerebrais
detectar as alterações, sensoriais por exemplo, e inter- psicofisiológicos têm importância determinante no
vir sobre elas. começo e evolução dessa entidade, só que a parte
Segue-se um segundo componente da percepção do corpo está presente e é o alvo observável da
da dor (percepção secundária), mais activo, cognitivo forte actividade neurofisiológica desencadeada por
e emocional que, inserido no todo, contexto biopsico- uma agressão física, regra geral mínima. Outra situ-
lógico e social da pessoa, resulta na elaboração da ação ocorre na anestesia histérica, em que há au-
experiência da dor por parte do sujeito. sência de sensibilidade aos estímulos dolorosos com
integridade neurofisiológica e em que a região in-
sensível não segue os dermatomos sensitivos, mas
sim o autoconceito topográfico do doente, onde o
Médico especialista em Psiquiatria
pela Ordem dos Médicos cérebro, mais uma vez, produz a experiência em DOR
Director da CLINIPSIQUE que, provavelmente, mecanismos psicobiológicos
Clínica de Dor do Porto afectivos intervêm. 5
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