Page 8 Volume 10, Número 1, 2002
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A. Gonçalves: Aspectos Psicológicos da Dor Crónica
externo ou interno, que não o nociceptivo. Deste modo, são diferentes. É também frequente pensar-se que,
estímulos nociceptivos mínimos podem desencadear sempre que a causa objectiva da dor é tratada, esta
um comportamento prolongado da dor. desaparece. Porém, tal não é verdade porque, por
A percepção da dor tem sempre, no seu processo, vezes, a dor persiste muito para além do tratamento da
a influência da memória, motivações, cognições e doença e por múltiplos factores.
emoções, não sendo de todo linear, ou seja, não tendo A segunda é que dependemos da comunicação
relação directa com o estímulo ou mesmo com a verbal e não verbal do paciente, sendo assim o uso de
sensação que a provocou. Por isso, as respostas outras actividades mental e comportamental que cons-
podem ser muito diferentes de pessoa para pessoa e titui a versão e reacção do paciente, com toda a
na mesma pessoa, dependendo do estado biopsicos- complexidade subjacente que estas pressupõem. A
social. exuberante manifestação da dor pode não ter relação
A possibilidade de experimentarmos dor é prioritária directa com a lesão que a causa, embora tal não
na presença de outros estímulos, embora dependa signifique que a dor seja provocada por um problema
igualmente do estado afectivo e motivacional e da emocional. As queixas de dor são influenciadas por
atitude de quem a experimenta. Assim, por exemplo, estados psicológicos e motivacionais do indivíduo,
em estado de êxtase religioso pode haver analgesia mas também por factores internos bem mais comple-
com integridade de todo o sistema nervoso em presen- xos que, por ultrapassarem a consciência do próprio,
ça de estímulos nociceptivos. não são comunicados ou são mesmo negados. Em
Nós reagimos quando imaginamos ou estamos em determinados estados psicológicos, como por exem-
presença de situações de dor, como se estivéssemos plo tristeza, incerteza ou ansiedade, e por exemplo na
a sofrer a acção de um estímulo nociceptivo, nomea- presença de ganhos secundários, as queixas de dor
damente em situações de grande sugestionabilidade, aumentam. Portanto, não há sempre relação directa
acompanhadas da produção de dor ou manifestações entre a gravidade da lesão e a intensidade da dor.
de dor na ausência de estímulo. As emoções podem interferir na dor de vários modos;
É muito importante integrar toda esta complexidade estas podem ser: causa determinante da dor, um esta-
da experiência da dor na, não menos complicada, rede do prévio e concomitante, um factor posterior da manu-
de actividade neurofisiológica que a suporta e compre- tenção da dor ou um factor de exacerbação da dor.
ender que a decomposição da experiência da dor é A realidade fundamental a ter em conta é que os
feita apenas para facilitar o seu estudo e explanação. factores psicológicos da dor estão presentes desde o
De uma forma muito simplificada, poderemos afirmar seu início, sendo os factores psicológicos que vão
que existe um sistema de dor constituído pelas vias determinar a evolução adaptada ou inadaptada à dor,
ascendentes aferentes, que transmitem a informação caso esteja associada a uma doença crónica ou, na
dos vários nociceptores periféricos até ao sistema ner- ausência desta, a evolução crónica da dor. De facto,
voso central (e não um centro de dor), e pelas vias podemos questionar por que é que, geralmente, estes
descendentes eferentes que modulam a dor. Pensamos casos são apenas avaliados psicologicamente por ex-
que este esquema é, ainda assim, simples para suporte clusão de presença de patologia orgânica e após
de tão grande diversidade de experiências de dor e inúmeras terapias sem sucesso? Por que é que estes
patologias. Existirão vários níveis de interacção facilita- factores psicológicos são entendidos sempre conse-
dora (exacerbação de dor) ou inibidora (adaptação a quência de dor crónica ou pertença de um caso
dor) entre o estímulo, a percepção e a resposta, desde psiquiátrico? É nossa convicção que os factores de
a periferia até ao sistema nervoso central. Outros meca- ordem psíquica estão presentes no início do quadro de
nismos fisiológicos e analgesia endógena integram e dor e intensificam-se e complicam-se, acompanhando
modulam a dor em simultâneo com elementos psicoló- a evolução para a cronicidade. Deste modo, é impor-
gicos conscientes e inconscientes, experiências, memó- tante salientar a extrema relevância da avaliação mul-
ria e a expressão da dor. Nesse sentido, a investigação tidisciplinar simultânea somática e psicológica para a
tem sugerido o envolvimento do tálamo, sistema límbi- prevenção da cronicidade da dor.
co, áreas corticais e subcorticais cerebrais na percep- Foi revisto de uma forma sucinta e geral alguns dos
ção da dor e os sistemas neurotransmissores cerebrais. aspectos conceptuais da dor, fundamentais para o
Pensamos que o sistema fisiológico de dor não está conceito multidimensional da dor, passando a seguir a
isolado nem é estático e sofre influências de outras uma abordagem da dor crónica, para compreender e
informações internas e externas que modificam o pró- avaliar o paciente com dor numa perspectiva actual e,
prio sistema de dor ainda por determinar. simultaneamente, multidisciplinar.
Várias dificuldades se colocam na avaliação de um A diferenciação entre dor aguda e dor crónica ultra-
paciente com dor. A primeira é o facto de a dor ser passa o factor temporal.
subjectiva e, como tal, nós apenas podermos inferir ou Geralmente, a dor aguda constitui um sinal biológi-
avaliar indirectamente a dor. Frequentemente, quando co útil, motivando a pessoa a procurar ajuda. A dor
observamos uma lesão, é possível inferir a presença aguda está frequentemente associada a uma lesão
da dor, embora, caso não exista lesão, não se possa ou patologia bem identificadas e compreensíveis para
excluir a existência de dor, uma vez que toda a queixa o doente e clínico, tendo tratamentos prioritários e
de dor é real seja qual for a sua causa. A simulação é bem definidos. Se, por um lado, as suas característi-
única excepção. No entanto é importante avaliar a cas descritivas e o comportamento do doente estão DOR
presença maior ou menor da dor mental ou dor somá- de acordo com a lesão que as provoca, por outro, as
tica ou vice-versa, pois as intervenções e resultados necessidades e atitudes do paciente estão em sinto- 7
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