Page 30 Volume 11, Número 2, 2003
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Martins I, et al.: Potencialidades da terapia genética no controlo da dor
O sucesso de abordagens iniciais de introdu- Os virologistas têm dado um importante contri-
ção de células ou tecidos foi limitado dado que buto aos estudos de terapia genética de controlo
a quantidade de substâncias analgésicas liber- da dor nomeadamente ao produzirem vectores
tadas era muito baixa. Para contornar esses virais HSV sem capacidade replicativa, imuno-
problemas, têm vindo a desenvolver-se linha- logicamente inertes e com capacidade de ex-
gens celulares geneticamente alteradas capazes pressão sustentada de genes potencialmente
de sobreexprimirem a proteína de interesse. As terapêuticos. A este propósito, destacam-se os
abordagens com melhores resultados dizem estudos que utilizaram o gene da pré-proence-
respeito a implantações intratecais em que as falina humana dado terem mostrado eficácia no
células funcionam como bombas infusoras de controlo da dor (Wilson, et al., 1999; Goss, et al.,
neurotransmissores diversos, como a serotoni- 2001; Braz, et al., 2001; Hao, et al., 2003).
na, galanina ou ácido λ-aminobutírico (GABA) Nestes trabalhos tem-se utilizado essencialmen-
ou de factores de crescimento como o BDNF te o HSV do tipo 1 (HSV-1) em que o gene viral
(brain-derived neurotrophic factor; Eaton, et al., que codifica a síntese da timidina cinase é
1997; 1999a; 1999b; Cejas, et al., 2000). interrompido pela inserção do transgene. Este
A terapia genética com recurso a vectores procedimento impede a expressão desta enzi-
virais tem recebido maior atenção. A transfec- ma e, consequentemente, inibe a replicação nor-
ção dos neurónios consiste na introdução de mal do vírus. Habitualmente a expressão do gene
vectores virais naquelas células e leva à altera- da pré-proencefalina está sob controlo do pro-
ção do fenótipo da célula-alvo. Os vectores motor citomegalovírus humano de expressão
virais contêm genes que podem produzir dois imediata, que induz uma expressão potenciada
efeitos opostos na célula-alvo mas que, no final, daquele opióide. As potencialidades terapêuti-
se destinam a inibir a nocicepção. A transcri- cas destas estratégias são sugeridas pelo efeito
ção dos genes inseridos nos vectores pode antinociceptivo detectado em modelos animais
conduzir a um aumento da função do neurónio de dor aguda e em situações de dor crónica.
nomeadamente na sobreexpressão de neuro- Relativamente ao local de administração do
peptídeos inibitórios, como a encefalina, ou na HSV-1, a administração à periferia tem sido a
redução da síntese de neurotransmissores que mais utilizada. Neste caso, ocorre síntese de
facilitam a nocicepção, como a substância P novo de pré-proencefalina nos neurónios dos
(Wilson e Yeomans, 2000). Os vectores virais gânglios raquidianos e aumento da expressão
devem, portanto, ser construídos de acordo do peptídeo nas lâminas superficiais da medula
com objectivos específicos do estudo e com a espinhal (Antunes Bras, et al., 2001). O efeito
situação experimental de dor que se pretende antihiperalgésico é detectado em diversos tes-
controlar. tes comportamentais destinados a avaliar a dor
aguda e é mediado por opióides espinhais dado
O vírus Herpes simplex como um potencial que é bloqueado pela administração intratecal
vector terapêutico de naloxona (Wilson, et al., 1999). Apesar da
antinocicepção ir diminuindo progressivamente
Idealmente, os vectores virais devem ser de ao longo do tempo, verificou-se que pode ser
fácil produção, imunologicamente inertes, ca- restabelecida por reinoculação do vector viral
pazes de inserir um ou vários genes em locais sem que ocorra desenvolvimento de tolerância
específicos do cromossoma da célula-alvo e (Goss, et al., 2001). Os potenciais efeitos tera-
destituídos de capacidade replicativa. Um outro pêuticos da aplicação de vectores virais conten-
requisito específico do controlo da dor crónica do o gene da pré-proencefalina ficaram também
diz respeito à necessidade de conseguir uma demonstrados em modelos experimentais de
expressão sustentada do transgene (Somia e dor crónica. A aplicação do vírus com o gene
Verma, 2000). Existem vários tipos de vectores da pré-proencefalina num membro cuja articula-
virais, nomeadamente, retrovírus, adenovírus e ção foi inflamada cronicamente, induz aumento
vírus Herpes simplex (HSV). No que respeita à da síntese de encefalina em neurónios sensitivos
terapia genética da dor, a utilidade do HSV tem e diminui a hiperalgesia. Outros parâmetros
sobressaído devido ao facto de possuir um demonstraram a potencial utilidade da técnica
genoma de dimensões consideráveis e que dado que os animais revelaram uma melhoria
permite a inserção de uma grande quantidade significativa na locomoção e um decréscimo da
de informação genética. Para além disso, a destruição do tecido ósseo (Braz, et al., 2001).
capacidade natural do HSV migrar retrograda- Recentemente, este vector foi também aplicado
mente tem sido explorada em estudos em que em modelos experimentais de dor neuropática
o vírus era aplicado à periferia de modo a infectar mostrando ter um efeito antialodínico (Hao, et al.,
os terminais nervosos sensitivos e a migrar 2003). A expressão do transgene potenciava o
retrogradamente para os gânglios das raízes efeito analgésico da morfina e os animais não
dorsais. Aqui, o vírus permanece num estado desenvolviam tolerância aquele fármaco (Hao,
de latência, isto é, o genoma viral permanece et al., 2003). DOR
na célula hospedeira sem que interfira na fun- A eficácia da administração de vectores virais
ção celular normal (Pohl e Braz, 2001). a nível central não foi abordada detalhadamente 29

