Page 6 Volume 20 - N3 - 2012
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Considerações Éticas
© Permanyer Portugal 2012

no Tratamento da Dor


José Luís Portela





Gostaria de começar por contar uma pequena Embora a Ética sempre estivesse subjacente
história que ficou conhecida, na minha antiga ao exercício da Medicina, só em 1971, VR Potter,
unidade, como «a história da polaca». biólogo e investigador em oncologia, no seu livro
Tratava-se de uma senhora de nacionalidade Bioethics – Bridge to the Future, propõe o termo
polaca, refugiada da última guerra mundial, «Bioética» para o estudo sistemático das dimen-
que nos foi enviada com um quadro de cancro sões morais das ciências da vida e do cuidado
avançado da mama com extensa infiltração local, médico.
dores incoercíveis, elefantíase do membro supe- Em 1976, o Relatório Belmont (ou Informe Bel-
rior correspondente e grande compromisso fun- mont), no decorrer duma comissão criada em 1974
cional por atingimento do plexo braquial. para regulamentar a pesquisa, estabelece três
Vivia-se na altura, na nossa unidade e não só, princípios éticos: autonomia, beneficência e justiça.
no início da década de 80 do século preceden- Em 1979, Beauchamp e Childress acrescentam
te, uma certa euforia por técnicas de recupera- um quarto: não-maleficência.
ção intensiva – bloqueios e fisioterapia – na ten- Mais recentemente têm sido descritos mais
tativa, que julgávamos correta, de melhorar a dois princípios: vulnerabilidade e precaução.
qualidade de vida da doente. Comecemos pelos princípios da beneficência
E esta senhora, provavelmente pouco informa- e da não-maleficência.
da e mal esclarecida, foi, durante algum tempo, São princípios hipocráticos.
autenticamente massacrada com uma terapêutica No Corpus Hipocratium, conjunto da obra atri-
agressiva, procurando incutir-lhe uma qualidade buída a Hipócrates e seus seguidores, estes
de vida que ela não podia nem queria desfrutar. princípios encontram-se logo estabelecidos:
Ainda hoje recordo o seu ar resignado e as – «Não levarei em qualquer casa em que en-
suas palavras magoadas: tre outro objetivo que não seja o bem dos
– Mais não, doutor! enfermos» (bonum facere).
Felizmente pudemos retroceder a tempo e con- – «Estabelecerei o regime dos doentes da
ferir-lhe a paz e tranquilidade que desejava. maneira que lhes seja mais proveitosa, se- Sem o consentimento prévio por escrito do editor, não se pode reproduzir nem fotocopiar nenhuma parte desta publicação.
E foi então que me apercebi que não se pode gundo as minhas faculdades e o meu en-
fazer tudo. tender, evitando todo o mal e toda a injus-
Há limites, limites que nós temos de impor a tiça» (primum non nocere).
nós próprios e aos nossos atos. Estes dois princípios inserem-se na extraordi-
Quais esses limites? nária revolução que se estabeleceu na Grécia
Esses limites são, essencialmente, princípios Clássica quando se passou de uma atitude me-
éticos ou princípios da Ética. ramente religiosa, mágica-teúrgica e, muitas ve-
A Ética é o ramo da Filosofia que estuda os zes, punitiva, exercida pelos sacerdotes e pelos
assuntos morais e do caráter. templos, para um conceito intuitivo-racional, que
Deriva da palavra grega ethos, que é a nossa se inicia com a liberdade de pensamento dos
morada, o nosso fundo, a nossa alma, o nosso grandes filósofos e das Escolas que vão criando
caráter, e determina toda a nossa conduta, quer a partir do século V a.C., como a de Pitágoras
com nós próprios quer com a sociedade. de Crotona ou de Empédocles de Agrigento.
Segundo os filósofos gregos, como Sócrates, Estes dois princípios completam-se e há até
Platão e Aristóteles, o ethos tende para o Bem, quem defenda que estes princípios se devem
em oposição ao Mal, e esta filosofia influenciou juntar.
fortemente o espírito judaico-cristão e foi base No entanto, entre o fazer bem, o tal bonum
de muitos códigos de conduta em vários ramos facere, e o não fazer mal, primum no nocere, vai
do saber, incluindo a Medicina. toda uma distância.



Ex-Diretor da Clínica de Dor
Instituto Português de Oncologia (IPO) DOR
Lisboa Nota: artigo baseado na comunicação sobre este tema no
E-mail: jportela@sapo.pt 1. Curso de Dor Crónica para Médicos Internos, HFF, 2011 5
o
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