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J.L. Portela: Considerações Éticas no Tratamento da Dor
Precaução. Este princípio, muito recente, ba- ou em fase terminal, no pleno respeito pela dig-
seia-se na garantia que deve ser dada aos do- nidade do ser humano».
entes, dos riscos potenciais e ainda não passí- Como se vê, não é por falta de legislação e
veis de identificação de determinados fármacos recomendações adequadas que o doente não
ou tratamentos. deve ser corretamente tratado.
Na realidade, assistimos frequentemente ao E será que o é?
uso de alguns arrojos terapêuticos dos quais Voltemos à história da polaca. © Permanyer Portugal 2012
desconhecemos as eventuais consequências. Qual o princípio ou princípios violados?
Lembro-me, por exemplo, dos excessos que De um modo geral é muitas vezes difícil atri-
se cometeram quando se descobriu a via extra- buir apenas a violação de um princípio, já que
dural como um local privilegiado para a admi- eles se interligam.
nistração de medicamentos no tratamento da Por exemplo, o princípio da beneficência im-
dor e a sua utilização sem regras nem cuidados, plica, à partida o respeito pelo da não-malefi-
o que me levou, num artigo já antigo, a chamar- cência, e há até quem defenda que estes dois
lhe uma via prostituída. princípios devem estar juntos.
A introdução de novos fármacos deve levar O mesmo acontece com autonomia e justiça,
em linha de conta este princípio, já que muitos pois o respeito pela pessoa humana implica a
dos efeitos à distância não podem ser previsí- noção de que todos merecem o mesmo respeito,
veis e podem ser potencialmente nocivos. o que já é um conceito de justiça.
E não basta os laboratórios encharcarem de E, provavelmente, outros se poderiam equa-
informações as bulas que acompanham os me- cionar.
dicamentos, que os tornam quase «intomáveis», Analisemos, então, a história da polaca.
pois o aparecimento de efeitos adversos não Princípio da beneficência: julgo que não foi vio-
previsíveis pode acontecer o que exige precau- lado, pois, à luz dos conhecimentos da época,
ções acrescidas. estávamos a tratar a senhora da maneira que con-
Não posso, também, deixar de tecer algumas siderávamos mais adequada e cuja atuação re-
considerações sobre a bioética e a investigação verteria para o bem da doente – bonum facere.
em seres humanos, já que o tratamento da dor Poderá considerar-se, no entanto, alguma ati-
implica a utilização de novos fármacos e novas tude de paternalismo, na medida em que a ava-
técnicas. liação do que seria melhor para a doente foi a
Em consequência das atrocidades cometidas minha, e não aquela que a doente desejaria.
a
na 2. Guerra Mundial em prisioneiros, surgem Princípio da não-maleficência: embora não
diretrizes no sentido de proteger as pessoas de houvesse intenção deliberada em prejudicar a
atos desumanos. senhora e não ter havido consequências nefas-
É assim que em 1947 surge o Código de Nu- tas dos atos praticados, julgo que há violação
remberga, depois a Declaração de Helsínquia deste princípio, pois não se verificou a melhoria
em 1964, posteriormente melhorada em 1970 e esperada e os tratamentos eram muito nefastos
1996. para a doente. Sem o consentimento prévio por escrito do editor, não se pode reproduzir nem fotocopiar nenhuma parte desta publicação.
Trata-se de uma visão kantiana do ser humano Princípio da autonomia: aqui sim, há uma ma-
como ser inviolável, nunca devendo ser utilizado nifesta violação deste princípio ético, na medida
como um meio mas como um fim, em que os em que a senhora não foi devidamente esclare-
interesses do indivíduo devem prevalecer acima cida sobre os atos praticados, seu desconforto,
dos da sociedade. prognóstico ou alternativas ao tratamento.
A partir da década de 1980 do século prece- Gostaria ainda de acentuar que não basta,
dente, surgem as Diretrizes Internacionais para nestes casos, um consentimento ou a assinatura
as Pesquisas Biomédicas em Seres Humanos, do doente, é necessário um completo esclareci-
em conjunto com o Council for International Or- mento do que se pretende fazer e quais as suas
ganization of Medical Sciences. limitações, danos ou consequências, pois mui-
A Europa cria a Comissão Europeia de Bioéti- tas vezes o doente tende a acreditar totalmente
ca e a Carta dos Direitos da Pessoa Doente e, no médico e a confiar que este fará por ele tudo
já este ano, em Kos, na Grécia, a Carta Europeia o que considere melhor.
de Ética Médica. Princípio da justiça: julgo que não, pois não
Entre nós, o Código Deontológico estabelece se verificou qualquer discriminação, positiva ou
os princípios em que deve assentar uma boa negativa, em relação à doente e aos atos reali-
o
prática médica, como, por exemplo, o artigo 31. zados que foram efetuados de acordo com o
que diz expressamente: «O médico que aceite estado da arte verificada naquela época.
o encargo ou tenha o dever de atender um do- Quanto aos princípios da vulnerabilidade e da
ente obriga-se por esse facto à prestação dos precaução, julgo não poderem ser invocados,
melhores cuidados ao seu alcance, agindo sem- pois a doente estava perfeitamente capaz de
pre com correção e delicadeza, no exclusivo decidir, a sua vontade foi respeitada e não esta-
intuito de promover a saúde, conservar a vida e va em jogo nenhum tratamento em fase de ex- DOR
a sua qualidade, suavizar os sofrimentos, nome- perimentação do qual se desconheciam as con-
adamente nos doentes sem esperança de cura sequências. 7
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