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Dor (2001) 9
clínica da doença, julgando-se que a dor desa- forma como os próximos estímulos irão ser sen-
pareceria como sua consequência, pelo que o tidos, como irá ser perpetuado o estímulo pre-
sintoma era mantido como elemento de moni- sente ou até mesmo como poderá ser criado um
torização da eficácia terapêutica. A utilização do estímulo a partir da memória de uma lesão ine-
ópio e do álcool para o alívio das dores, passou xistente. Em suma, a percepção da dor deixou
a ser considerado um comportamento obsoleto, de estar exclusivamente relacionada com a lesão
menosprezado face à possibilidade de cura etio- que supostamente a originou.
lógica. Assim, o aparecimento de uma dor pode re-
Porém, constatando-se o falhanço da medi- lacionar-se não só com uma doença (v.g. uma
cina na eliminação dos sintomas, apesar do tra- neoplasia) ou com uma lesão física (v.g. um trau-
tamento das patologias, verificou-se que o doen- matismo), mas também com o tratamento dessa
te havia sido abandonado ao seu sofrimento. mesma doença (v.g., com a quimioterapia). In-
Com o aparecimento da teoria do gate control clusivamente, a dor pode até persistir para além
de Wall e Melzack e os contributos de John Bo- do desaparecimento da doença que lhe deu
nica, passou a ser dada maior importância ao origem (v.g., pós-herpes zoster) ou até aparecer
tratamento da dor como parte integrante da sem nunca ter existido lesão física (v.g., uma ce-
saúde. Assim se deixou de considerar a elimi- faleia).
nação da doença como revestida de maior im- Em face desta multiplicidade de circunstân-
portância que a eliminação dos sintomas. cias em que a dor se poderá manifestar, fica ple-
namente justificada a definição da IASP (Inter-
Realidade biológica national Association for the Study of Pain), que
considera a dor com "uma experiência sensitiva
Embora invisível, a dor é sentida através de e emocional desagradável associada a lesão te-
mecanismos reais e complexos sujeitos a es- cidular potencial ou real, ou descrita em termos
tudos cada vez mais aprofundados e a de- dessa lesão".
monstrações cada vez mais fundamentadas pela Até à percepção pelo córtex cerebral, é ne-
comunidade científica. Sabe-se hoje de que ma- cessário um longo trajecto desde a periferia. Du-
neira é que o fenómeno dor é desencadeado a rante a sua transmissão ao longo do sistema ner-
partir de uma lesão ou agressão, mas sabe-se voso, e através de mecanismos de modulação,
também que a dor pode existir ou continuar o estímulo inicial é modificado, potenciado ou
mesmo sem a concomitância de lesão alguma. inibido até chegar ao conhecimento. A dor que
A nível local, para além do estímulo resultante se sente é apenas o resultado final de um con-
da lesão tecidular, existe a libertação de várias junto de processos que podem variar em cada
substâncias (tais como os leucotrienos, bradi- situação ou em cada pessoa.
quinina, tromboxano ou substância P) que ao Do mesmo modo que a imagem que se tem
modificarem o ambiente da lesão ou por alte- de um estímulo doloroso é condicionada pela in-
ração da capacidade de sensibilização dos no- fluência de vários mecanismos, também a dor
ciceptores, condicionam à partida a forma como presente é responsável pela posterior modifi-
o estímulo lesivo vai ser iniciado. cação desses mesmos mecanismos. A memória
Sabe-se também que da passagem do estí- de experiências prévias vair ter cada vez mais
mulo inicial, vindo do sistema nervoso periférico, peso na forma como as experiências seguintes
para o sistema nervoso central no corno poste- vão ser integradas.
rior da medula se processam interligações entre
diferentes fibras ascendentes, de velocidade de Realidade psíquica
condução diferente, e outras descendentes com
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finalidades moduladoras. Fruto da interacção "... Os corpos não sofrem, as pessoas sim..." .
local entre células e neurotransmissores resultam É uma realidade que o sofrimento só existe para
efeitos facilitadores ou inibidores da transmissão uma pessoa a partir da altura em que ela o sente,
do estímulo. independentemente da dimensão da lesão que
A transmissão do estímulo ao longo do sis- atinge o corpo. Vingou a ideia de que o problema
tema nervoso central vai sofrer a influência não já não é a lesão em si, mas as consequências
só destes mecanismos de modulação, como vai que ela tem para aquela pessoa específica. O
encontrar, em áreas supra-espinhais, centros que contexto no qual a lesão ocorreu e a valorização
vão integrar neste estímulo componentes afec- que a pessoa lhe dá são factos que, sendo me-
tivos e actividades cognitivas. A imagem do es- nosprezados, retiram grande parte da dimensão
tímulo inicial é assim tratada, não só em termos subjectiva da experiência dolorosa.
de intensidade mas também de significado, pelo É mais fácil relacionar uma dor ou um sofri-
que a percepção pelo córtex cerebral é o resul- mento com a dimensão objectiva da agressão
tado de um intenso trabalho de relacionamento física que a originou, mas provavelmente mais
sensorial e emocional. importante do que isso é a agressão da imagem
® A par dos processos directamente relacio- corporal da própria pessoa que está em causa
DOR nados com a propagação do estímulo, há ou- para si mesma. Pode até não existir corpo, como
8 tros mecanismos que serão responsáveis pela no caso dos amputados, mas a imagem dele