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Dor (2001) 9
o doente do que a própria doença em si. La- da dor e através dela do sofrimento, leva a um
mentavelmente, nos últimos tempos a medicina sentimento de injustiça pela perda de um signi-
moderna esteve mais preocupada com a doença ficado para a vida: porquê eu?, porque tenho de
do que com o doente, mais com os resultados sofrer?, porque não melhoro? O medo relativo
clínicos do que com a satisfação do paciente. ao futuro não está por vezes ligado ao diagnós-
A dor e o sofrimento não deveriam ser sepa- tico, mas ao aparecimento de sofrimento e ao
rados tão facilmente, como acontece com a visão significado que isso possa trazer: acreditei no
dualística corpo/espírito. O sofrimento é o maior mundo e agora ele ignora-me no meu sofrimento.
dano/incómodo dos dois, sendo a dor uma forma Ao negligenciar o tratamento da dor, a medi-
de expressão do sofrimento e talvez até a que cina perde a imagem de humanização que a
mais possibilidades tem de tratamento efectivo. vinha caracterizando e que justificou a posição
A concepção holística do ser humano deriva de Victor von Weizsäcker ao afirmar que a
da filosofia de Aristóteles, segundo o qual exis- imagem fundamental da medicina é constituída
tiram quatro componentes da alma: por um homem em situação de emergência e
1. Vegetativo - correspondendo às funções fi- outro que o socorre. O progresso médico no
siológicas, cujo equilíbrio é a base da saúde. diagnóstico e terapêutica é necessário e sen-
2. Apetitivo - em relação com as emoções, sato, mas não deve ser esquecida a dimensão
desejos responsáveis pela sensação de bem- antropológica da medicina, apesar da necessi-
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-estar. dade tecnológica .
3. Deliberativo - ordena decisões práticas e
racionais, a sua satisfação é traduzida pelo su-
cesso. Realidade jurídica
4. Contemplativo - noção do significado da
existência humana que se completa quando se A dor, enquanto fenómeno humano e reali-
encontra um sentido para a própria vida. dade condicionadora das actuações dos indiví-
Não é possível separar cada um destes níveis duos, não pode deixar de ser tomada em conta
de existência, pelo que as respectivas ex- no que respeita às regras de organização da so-
pressões coexistem num todo, integrando a ciedade, de normativização de comportamentos,
pessoa como uma unidade. A ruptura do ser hu- e de disciplina de direitos e obrigações.
mano como uma unidade vai desde logo criar Assim, a necessidade de organização da vida
sofrimento, que pode ser entendido como a frus- em sociedade e da protecção de valores ine-
tração resultante dessa mesma ruptura. rentes à personalidade humana implicam a in-
A doença, enquanto alteração biológica ou ve- tervenção reguladora de um conjunto de normas
getativa é, de qualquer modo, uma forma objec- que atribuem direitos, instituem deveres, e es-
tiva de sofrimento. A sua existência ou a existência truturam as relações que se estabelecem entre
da dor que se lhe associa origina um estado de as diferentes entidades, públicas ou privadas,
mal-estar, constituindo sofrimento também pelo que constituem o tecido social.
facto de impedir a satisfação dos desejos ou al- Tais normas podem implicar uma valoração
terar a relação da pessoa com o mundo. A pessoa jurídica da realidade dor sob diferentes prismas:
deixa de se sentir bem, quer no seu mundo quer assim, pode considerar-se a ausência de dor
no seu corpo, esquecendo a sua relação e os como fazendo parte dum direito à saúde e à in-
seus projectos com os outros. tegridade pessoal (física e psíquica) dos ci-
A sensação de poder, autonomia e auto-sufi- dadãos, cuja violação (levada a cabo por enti-
ciência que são necessárias para levar a cabo dades publicas, ou privadas) pode implicar a
os projectos pessoais e com eles obter o su- obrigação de compensar ou indemnizar os pre-
cesso, está comprometida na existência de um juízos correspondentes.
impedimento físico. Há uma dependência em re- Por outro lado, a dor, enquanto elemento con-
lação à realização de projectos pessoais. A dicionador da actuação humana pode ter um
pessoa deixa de se sentir segura com o próprio papel preponderante na invalidação do consen-
corpo e evita dispor dele para não sofrer. timento que é tomado como condição neces-
A capacidade de decisão e iniciativa ficam de- sária para a validade de execução de determi-
bilitadas em face do estado de desânimo que nados actos médicos que implicam, à partida,
surge perante a persistência do sofrimento. Nem lesões corporais.
sequer faz sentido perder tempo à procura da Por último, a dor é juridicamente tomada em
satisfação resultante de projectos que já não se consideração enquanto dano indeminizável em con-
acredita poder concluir. O prazer da vida e do sequência de uma agressão ilícita, ou seja,
trabalho, o sucesso e o empenho em fazer bem contrária às normas jurídicas.
as tarefas deixam de ter interesse, mesmo que Tendo em conta, como elemento nuclear e
a capacidade física não esteja diminuída, só pelo aglutinador de toda a matéria, a protecção jurí-
facto de a pessoa se sentir doente e miserável, dica dos direitos de personalidade dos indiví-
® na ausência da sensação de bem-estar. duos, procuraremos dar uma breve visão das di-
DOR A nível da integração superior dos objectivos ferentes áreas normativas de consagração da
10 relativos à existência humana, o aparecimento protecção dos direitos à saúde, ao bem-estar, e