Page 40 Volume 18 - N.2 - 2010
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F.L. Moreira Neto: Medicina de Translação em Dor: o Que Nos Ensinam os Modelos Animais?
A complexidade do fenómeno da dor tem mesmo quando diagnosticada uma condição
também dificultado a avaliação do verdadeiro patológica similar, observada na prática clínica
valor dos avanços verificados na investigação diária. Os estudos epidemiológicos evidenciam
dita «básica». Dados obtidos maioritariamente que o típico doente com dor crónica está na
em humanos, mas também mais recentemen- meiaidade, é do sexo feminino e que robustas
te em modelos animais, evidenciam que a dor diferenças raciais e étnicas (que podem ter uma
é afectada por muitos factores moduladores base genética) parecem também existir. No en-
como o sexo, genótipo, ambiente social, idade, tanto, a correcção desta situação na investiga-
dieta, temperatura, entre outros. Fenómenos de ção básica, embora talvez possível, não é ape-
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grupo de empatia social e até o tipo de mate- lativa porque envolveria estudos pré-clínicos
rial usado no revestimento das caixas onde são mais prolongados e complexos, iria originar da-
alojados os animais mostraram poder influen- dos menos precisos, mais ambíguos, e levanta-
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ciar significativamente os resultados em mode- ria questões éticas importantes relativamente
los de dor. Tem sido também demonstrado que ao uso e quantidade de animais necessários
a dieta implementada aos animais pode ter um em cada estudo . Mesmo assim, têm sido su-
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papel importante na melhoria ou agravamento geridas algumas medidas no sentido de au-
de alguns sinais de inflamação, como o inchaço mentar a percentagem de sucesso dos estudos
local e a extravasão plasmática, assim como básicos no que concerne à sua validade predi-
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pode alterar os níveis de hiperalgesia . Embora tiva relativamente a novas terapêuticas que
neste estudo os efeitos da dieta tenham sido possam ser implementadas na prática clínica
independentes da idade dos animais , outros para o tratamento/atenuação da dor . A inclusão
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trabalhos evidenciam que a idade pode também de animais de ambos os sexos e de estirpes
ser um factor importante a ter em conta quando variadas, sem que isso requeira a necessidade
se afere a sensibilidade a estímulos dolorosos de usar um número acrescentado de animais
em animais, particularmente se estes forem do por grupo experimental é uma das sugestões, por
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sexo feminino e portanto sujeitos a alterações exemplo .
hormonais significativas ao longo do período de Apesar de todas as limitações inerentes à ex-
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vida . Alguns estudos também sugerem que a perimentação animal e ao crescente interesse
exposição frequente a estimulação nóxica du- na substituição de experiências baseadas em mo-
rante fases precoces do desenvolvimento (pe- delos animais por estudos em humanos voluntá-
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ríodo perinatal, por exemplo) pode alterar per- rios, defendida por alguns , há também a con-
manentemente o desenvolvimento normal do vicção de que, para o avanço do conhecimento,
sistema nervoso central com as consequentes há necessidade de modelos animais na investi-
alterações estruturais e funcionais de circuitos gação em dor 28 . Segundo Mogil, et al. , dois
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nociceptivos. Para além do factor idade, a ex- terços dos artigos publicados na revista Pain
tensão do impacto desta exposição a estímulos desde 1975 até 2007 foram baseados em huma-
dolorosos parece depender também do sexo . nos. No entanto, a maioria destes tiveram como
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Na idade adulta, foi também recentemente veri- objectivo a caracterização do estado doloroso,
ficado que tanto o sexo como as alterações hor- sendo muito baixa a percentagem dos que tes-
monais modificam o desenvolvimento de alodi- taram os mecanismos anatómicos, bioquímicos
nia num modelo de lesão crónica da medula ou fisiológicos da dor. Um facto é que tecnica-
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espinal em ratos . De facto, tanto o sexo (en- mente os modelos animais oferecem vantagens,
tendido como os factores biológicos determina- como a caracterização extremamente precisa da
dos pelos respectivos cromossomas XY ou XX), neuroquímica e da anatomia, uma resolução tem-
como o género (que se refere a factores psicos- poral e espacial excelente, e a possibilidade de
sociais como o comportamento masculino ou se fazerem registos electrofisiológicos directos.
feminino) parecem influenciar a resposta a me- Em defesa dos estudos em modelos animais
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dicação analgésica , e a evidência baseada estão também os argumentos de que estes tam-
essencialmente em experimentação em animais, bém oferecem vantagens relativamente a uma
tem revelado que existem diferenças entre se- padronização de condições ambientais e gené-
xos, muitas vezes qualitativas e surpreendente- ticas, além de que são mais económicos e se-
mente robustas, a níveis pouco elevados dos guros. Em suma, os estudos em animais permi-
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circuitos neuronais (revisto em Mogil, et al. ). tem uma pesquisa mais controlada das condições
Tendo em conta todas estas condicionantes, ou- de dor crónica, que são completamente impos-
tra questão que influencia a interface animal síveis de conseguir em humanos em larga escala.
para humano, diz respeito à crescente uniformi- Para além disso, podem constituir um guia e um
dade dos estudos pré-clínicos. De facto, esses complemento aos estudos de neuroimagem e
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estudos são quase sempre feitos em animais genéticos em dor . Assim, como complemento
(principalmente roedores) do mesmo sexo (qua- à neuroimagem, os estudos animais podem ser
se sempre machos), idade (geralmente jovens úteis para:
adultos), peso, colónia e estirpe, sujeitos às – Ajudar a focalizar os estudos em humanos
mesmas condições de manipulação e acondi- em questões e em regiões encefálicas re-
cionamento (luz, alimentação, temperatura, es- levantes (por exemplo na função e organi- DOR
paço). Isto contrasta desmesuradamente com zação de neurónios e vias nociceptivas a
a heterogeneidade das populações humanas, nível cortical). 39