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J. Brandão: Dor Nos Cuidados de Saúde Primários
do médico com a multipatologia obriga-o a es- que, por si só, necessita de atenção e tratamento
colhas terapêuticas e a opções de atitude. Podem específico.»
sair desvalorizados problemas consideradas
«menos nobres», porque não determinando de Dimensões sensorial e emocional da dor
modo directo alguma ameaça à vida ou à inte- Os estados emocionais influenciam marcada-
gridade do indivíduo. «As dores» das artroses, mente a percepção dolorosa, tanto no sentido
da lombalgia crónica e do aparelho locomotor da inibição da sua intensidade como no da sua
em geral, porque monótonas e com caracte- exaltação. Estados emocionais depressivos
rísticas semelhantes de consulta para consul- podem induzir percepções de maior intensida-
ta, podem passar a constituir uma «música de de, ao contrário de situações de stress, que
fundo» não convenientemente ouvida e valori- tenderão a diminuí-la: «analgesia induzida pelo
zada pelo médico como fonte importante de stress» .
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sofrimento. Também a componente cognitiva, que se re-
Por outro lado, a presença constante de quei- fere à influência da cultura, das experiências
xas de dor pode induzir perturbação no médico, de dor vividas no passado, das crenças reli-
levando-o a estar menos atento e disponível giosas e de outros factores sociais ou familia-
para um desempenho global, como concluem os res, induz modulações sobre a percepção do-
autores de um estudo norte-americano com in- lorosa.
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clusão de 509 doentes e o recurso a videogra- Como substrato para a complexa interacção
vação de consultas. Evidenciou-se que a pre- entre as componentes sensorial, psicológica e
sença de um doente com dor originava uma emocional da dor, tem sido experimentalmente
modificação significativa do comportamento clí- demonstrada a existência de um intenso «diálo-
nico do médico, que passava a uma atitude de go» neuropsicológico entre a progressão do es-
maior tecnicismo, com recapitulações de historial tímulo nociceptivo até ao córtex cerebral e me-
clínico e de observação física, em detrimento de canismos biologicamente activos que tentam
actividades de carácter preventivo e de promo- contrariá-la .
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ção de saúde. Sendo isto significativo da impor- A teoria do «portão de controlo da dor», for-
tância que os médicos prestaram às queixas mulada em 1965 por Melzack e Wall , enunciou
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dolorosas do doente, não poderemos deixar de uma primeira explicação para a natureza mul-
pensar na perturbação causada ao decurso da tifacetada da dor, estreitamente influenciada
consulta, apontando para necessidades logísticas pelas circunstâncias subjectivas e individuais.
diferenciadas. Através da descoberta dos complexos mecanis-
mos neurofisiológicos que lhe estão subjacen-
Melhorar a abordagem da dor tes, tem sido possível vir a compreender como
Dor e sofrimento é que tão diversas funções cerebrais indutoras
A dor é uma experiência subjectiva muito de actividades de alerta, autonómicas, emocio-
nais, cognitivas e motoras, são capazes de in-
complexa, adornada de emoções que motivam terferir e modular a percepção dolorosa .
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comportamentos nem sempre fáceis de com- Estudos recentes suportados por modernas
preender ou catalogar. De acordo com intrínse- tecnologias de neuroimagem e de investigação
cos pessoais e com o ambiente sociocultural electrofisiológica vêm fundamentando o entendi-
de inserção, o indivíduo com dor sentirá dife- mento do processo doloroso crónico como uma
rentes disposições para comunicar o que se doença do cérebro, em que alterações de ca-
passa consigo. Quando o faz, é porque enten- rácter químico, estruturais e funcionais terão a
deu que o seu sofrimento deixou de ser ape- responsabilidade de manter a sintomatologia 17,18 ,
nas um assunto privado, passando a deter suportando o conceito de dor crónica como
uma dimensão pública . Então, adoptará com- doença, entendida como alteração estrutural ou
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portamentos motivados por essa circunstân- funcional capaz de produzir sintomas. Relativa-
cia, a fim de comunicar aos outros o modo mente às alterações estruturais observadas no
como está a sentir-se , pedindo ajuda com cérebro de doentes com dor crónica, tem ocor-
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vista à minimização da dor, à facilitação da rido um progresso importante em observações
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cura e à recuperação . experimentais realizadas nos últimos anos, ten-
No caso da dor crónica, em que a constância do sido possível identificar diminuição de espes-
dolorosa moldará um certo tipo de atitude e sura do córtex cerebral de zonas cerebrais mais
modo de agir, será a totalidade do indivíduo a relacionadas com o processamento e percep-
estar implicada, induzindo expressões verbais e ção da dor, como sejam o tálamo e a região
não-verbais muito próprias e específicas do seu dorsolateral do córtex pré-frontal .
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sofrimento subjectivo.
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De acordo com Wall e Melzack , «a dor cró- Avaliação psicossocial
nica, aquela que permanece após realizar a sua
função de protecção do organismo, não deve dos doentes com dor crónica DOR
ser considerada uma simples ferida ou doença. Nos últimos anos, de acordo com a melhor
É mesmo uma síndrome – um problema médico organização de cuidados aos doentes com dor 5