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J.J. Figueiredo Lima: Plantas e Dor. Contributo para o Estudo Etnoantropológico do Tratamento da Dor
de álcool. A paciente sobreviveu para descrever Pierre-Jean Robiquet, químico francês, adminis-
o sofrimento a que foi submetida). trador da Escola de Farmácia de Paris, extraiu,
O isolamento político a que o Japão estava em 1832, a codeína. Menos potente do que a
sujeito impediu a divulgação desta técnica ino- morfina, foi utilizada como antitússico, sedativo
vadora para alívio do sofrimento e da dor. e antiespasmódico.
Em 1853, quando o Japão permitiu a acesso George Meck (1848) isolou a papaverina, al-
da comunidade internacional, os médicos oci- calóide do ópio, e Carl Mannich sintetizou-a em
dentais não manifestaram qualquer interesse por 1927. Foi utilizada como espasmolítico da mus-
esta técnica. Já possuíam, desde Outubro de culatura lisa.
1846, agentes farmacológicos anestésicos (pro- Em 1855, o químico alemão Friederich Gaedecke
tóxido de azoto, éter e clorofórmio) e analgési- conseguiu o extracto das folhas de um arbusto
cos (ópio e morfina). americano conhecido por coca (Erythroxylon
O século XIX seria caracterizado pela investi- coca), que designou por eritroxileno.
gação fitofarmacológica das plantas utilizadas Albert Niemann e Friedrich Wahler (1860),
na Medicina Popular e de outras, desconheci- continuando as investigações, isolaram deste
das, oriundas das Américas. extracto um alcalóide tropano, éster do ácido
A análise fitoquímica viria a resultar na síntese benzóico, que foi apelidado de cocaína. As fo-
de muitas moléculas farmacologicamente activas lhas de coca, depois de secas e misturadas com
(curare, quinina, pilocarpina, morfina, ácido ace- cal ou com alcalóides de determinados cactos,
tilsalicílico, atropina, etc.). eram utilizadas pelos Incas para fins religiosos
Entre 1839 e 1842, o ópio esteve na origem da (excitante e euforizante) e para aumentar a re-
primeira guerra entre ingleses e chineses. A se- sistência ao esforço físico. Começou por ser uti-
gunda guerra do ópio entre estes dois estados lizada para tratamento da dependência da mor-
seria desencadeada em 1856 («Guerras do Ópio»). fina e até ao século XX seria consumida sem
Foi a primeira droga, obtida de uma planta, a de- regras e sob várias formas.
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sencadear conflito bélico entre dois estados ! Inúmeras personalidades da arte, da política
O século XX caracterizou-se pela expansão e da medicina ficaram conhecidas pela depen-
da cultura científica em todas as áreas da vida dência e pelas loas tecidas a este alcalóide.
social da humanidade. A etnobotânica e a etno- Em 1863 surgiu, o vinho Mariani, uma mistura
farmacologia impuseram-se como áreas de in- de álcool etílico e de cocaína, produzido pelo quí-
vestigação, a caracterização das florestas e a mico italiano Ângelo Mariani (1938-1914), do qual
protecção da flora assumiram um papel relevan- se venderam milhões de litros, consumidos por
te na vida colectiva, as comunicações sobre fi- artistas, intelectuais, reis e gestores espirituais
toterapia e identificação de agentes fitoquímicos (condecorado pelo Papa Leão XIII) e indivíduos de
ocuparam milhares de publicações científicas. todas as classes sociais com os mais diversos
A Fitoterapia constitui efectivamente uma rea- objectivos (antidepressivo, analgésico, estimu-
lidade social, apesar da forte componente das lante físico e intelectual, antagonista da morfino-
moléculas sintéticas da Medicina Ocidental . dependência, etc.).
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A OMS (1995) reconheceu que 80% da popula- Em 1886, o farmacêutico John Pemberton in-
ção mundial utiliza a medicina tradicional nos cui- troduziu nos Estados Unidos da América (EUA)
dados básicos de saúde. Neste universo calcula um refresco com elevados teores de cocaína.
que 85% utilizam plantas ou derivados. Recomen- Este composto conseguiu atingir os maiores índi-
dou, por isso, aos 191 estados membros que, à ces de popularidade e foi designado por Coca-
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semelhança do Brasil (2001), fossem definidas «Po- Cola . A partir da primeira década do século XX,
líticas Nacionais para as Plantas Medicinais e Me- após a ilegalização do consumo de cocaína, os
dicamentos Fitoterápicos», de modo a regulamen- fabricantes passaram a utilizar folhas de coca
tar o consumo e a garantir a farmacovigilância. descocainizadas.
No século XIX, a cocaína passou a integrar os
componentes de diversos produtos de venda
A fitofarmacologia livre (cigarros, doces, xaropes, analgésicos, an-
Friedrich Serturner (1783-1841), farmacologis- titússicos, sedativos, tranquilizantes, etc.). Na
ta alemão, isolou um alcalóide do ópio, a morfi- década entre 1870 e 1880, o consumo tornou-se
na (1804), sendo o primeiro investigador a isolar moda social, particularmente, quando associada
o princípio farmacologicamente activo de uma à morfina e à heroína 14-16 .
planta. Apenas no início do século XX passaram a ser
Com uma modificação estrutural na molécula utilizadas folhas descocainizadas na confecção
da morfina, o alemão Heinrich Dreser obtém destes produtos.
uma nova molécula, a diacetilmorfina (1806), isto Carl Koller, jovem cirurgião do Viena General
é, a heroína (do grego heros). Inicialmente utili- Hospital, pediu a um colega que apresentasse
zada para tratamento dos indivíduos dependen- no Congresso de Oftalmologia de Heidelberg
tes da morfina, rapidamente se verificou tratar-se (11 de Setembro de 1884), os resultados expe- DOR
duma droga perigosa pelo nível de dependência rimentais (incluindo em si próprio) e os excelentes
que gera e pelos danos orgânicos que provoca . resultados clínicos utilizando a cocaína como o 17
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