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Sem retirar a grande importância do abuso medicamentoso, penso que este
factor na cronicidade recorrente da dor de cabeça não é o único ou o mais
relevante, este será mais um elemento de uma síndrome complexa de cefaleia
crónica. Neste, a recorrência é grande ao fim de um ano, apresentam um pre-
juízo funcional geral significativo na vida diária e marcados comportamentos
de dor.
O abuso de medicação analgésica que existe na cefaleia tem também o
reverso da medalha que é a pouca adesão à medicação proposta, sendo, por
exemplo, nos pacientes com enxaqueca apenas de 50-60%, podendo ao fim de
um ano ser ainda bastante menor.
As situações orgânicas neurológicas não são causas comuns de cronicida-
de. A ocorrência de um trauma cefálico ou cervical pode contribuir para a
modificação de um padrão típico de enxaqueca ou desencadear o início agudo
de uma cefaleia crónica.
Penso que a comorbilidade psicológica e psiquiátrica é o maior factor para
o início ou modificação de um padrão prévio de dor de cabeça e a transforma-
ção numa cefaleia crónica e até diária. As perturbações de depressão, de an-
siedade e somatoformes estão entre os diagnósticos mais frequentemente as-
sociados a dor de cabeça crónica. O elevado neuroticismo que os pacientes
com cefaleias crónicas apresentam também revela uma hiperactividade
emocional e do sistema nervoso autónomo. Este neuroticismo elevado não é
uma consequência da cronicidade mas faz parte da síndrome global que
constitui a cefaleia crónica. Os factores de stress são determinantes no início
ou exacerbação das dores de cabeça assim como na psicopatologia encontra-
da. Portanto, podemos pensar que o paciente com cefaleia crónica apresenta
uma hiper-reactividade psicológica e fisiológica. Por outro lado, os mecanis-
mos da enxaqueca e das emoções partilham aspectos neuroquímicos comuns
e, por isso, pode ser colocada a hipótese não só de comorbilidade mas também
de co-sensibilização recíproca.
Verifica-se na evolução dos pacientes com cefaleias que quanto maior o
tempo de cronicidade mais significativa é a disfunção psicológica ou a morbi-
lidade psiquiátrica. Mas também se verifica que com a intervenção psicotera-
pêutica adequada ao caso clínico em que os factores psicológicos são enfren-
tados e resolvidos, o peso dos factores psicológicos fica bastante diminuído,
a cefaleia diminui de frequência mas não desaparece totalmente. Isto é, a favor
que as cefaleias primárias não são uma perturbação psiquiátrica mas que na
coexistência das duas, ambas têm que ser tratadas.
Outro tipo de cefaleia crónica é a cefaleia de tipo tensão crónica quando
ocorre quinze dias ou mais por mês num período médio de mais de três meses.
Pode corresponder a uma evolução de uma cefaleia de tipo tensão episódica
ou iniciar-se de modo crónico. Um aspecto verificado na clínica é o facto de
um paciente com cefaleia de tipo enxaqueca, quando tem episódios de tipo
tensão, a sintomatologia pode evoluir para a sintomatologia típica de enxaque-
ca e o tratamento mais eficaz poderá ser um triptano. Os mecanismos neuro-
fisiológicos já abordados podem explicar esta mescla de sintomas. Neste tipo
de cefaleia de tipo tensão crónica a comorbilidade psiquiátrica está igualmen-
te presente como descrita acima. O abuso medicamentoso também existe mas
da experiência clínica resulta que na forma pura de cefaleia de tipo tensão este
não é tão significativo e não é referido pelos pacientes o mesmo tipo de cefa-
leia de rebote verificado na enxaqueca crónica. O abuso de medicação parece
ser maior e persistente quando os analgésicos estão associados a cafeína e
barbitúricos.
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