Page 20 Guia para o Tratamento da Dor em Contextos de Poucos Recursos
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experiência dolorosa e sua atitude com relação à dor iguais em todos os países europeus nem o sentido
foi caracterizada como “ansiedade orientada para o da palavra “pallium”; às vezes ela era usada por
futuro”. De acordo com a interpretação dos curandeiros para disfarçar sua incapacidade de tratar
pesquisadores, essa ansiedade demonstrou uma curativamente os pacientes.
tentativa de estar consciente de sua própria saúde. Os cuidados paliativos se tornaram ainda mais
Quanto mais os imigrantes italianos, irlandeses ou importantes quando outra pandemia totalmente
judeus eram assimilados pelo modo de vida inesperada irrompeu em meados da década de 1980
americano, mais os seus comportamentos e atitudes – HIV/AIDS. Principalmente na África, essa nova
se aproximavam daqueles dos “Velhos “praga” se transformou em um enorme problema
Americanos”. No entanto, a dor ainda era vista de saúde que já não podia mais ser ignorado. Câncer
como apenas um sintoma e as culturas não e dor neuropática têm um papel importante na vida
ocidentais não eram foco de interesse. de pacientes com HIV/AIDS. O desenvolvimento
Foi preciso cerca de mais três décadas para mudar da medicina paliativa na África começou no
essa situação. Durante a década de 1990, estudos Zimbábue em 1979, seguido pela África do Sul em
demonstraram que atitudes e crenças diferentes em 1982, pelo Quênia em 1989 e por Uganda em 1993.
grupos étnicos diferentes de todo o mundo tinham As instituições de Uganda se tornaram modelos na
um papel na variação de intensidade, duração e década de 1990, a partir da iniciativa da médica
perceção subjetiva da dor. Como consequência, os Anne Marriman (1935-) que passou a maior parte de
profissionais de saúde tiveram que admitir que os sua vida na Ásia e na África. Uganda tinha um
pacientes com dor (crônica) admiram terapeutas que ambiente favorável para seu projeto “Hospice Africa
reconhecem suas crenças culturais e religiosas. Uganda” porque na época Uganda era o único país
Outro aspeto importante que atraiu o interesse foi o africano cujo governo havia declarado os “cuidados
alívio da dor em pacientes com doença avançada. paliativos para vítimas de câncer e AIDS” uma
Foi a enfermeira, assistente social, e depois médica prioridade do seu “Plano Nacional de Saúde”. A
Cicely Saunders (1918-2005) que desenvolveu o taxa de tratamento curativo de câncer em Uganda é
conceito de “dor total”. A dor crônica na doença baixa, assim como em quase todos os países em
avançada muda totalmente a vida cotidiana e põe desvantagem econômica. Essa situação torna os
em cheque a vontade de viver. Esse problema está problemas associados ao câncer e à AIDS ainda
sempre presente, então Saunders chegou à mais urgentes.
conclusão de que “a dor constante precisa de A ampla aceitação do tratamento da dor crônica no
controle constante”. De acordo com esse conceito, século XX exigiu que a Organização Mundial de
a dor não pode ser separada da personalidade e do Saúde (OMS) assumisse a liderança, estimulada por
ambiente do paciente com doença avançada e fatal. Jan Stjernswärd da Suécia (1936-). Em 1982,
A fundação do St. Christopher’s Hospice em Londres, Stjernswärd convidou um grupo de especialistas em
Inglaterra, em 1967 por Saunders pode ser dor, inclusive Bonica, para ir a Milão, Itália,
considerada o ponto de partida da medicina desenvolver medidas para a integração do
paliativa. Reflete uma mudança de interesse da tratamento da dor ao conhecimento comum e à
medicina de doenças agudas (infeciosas) para câncer prática médica. O câncer foi escolhido como ponto
e outras doenças crônicas na primeira metade do de partida. Naquela época, os especialistas estavam
século XX. O termo “cuidados paliativos” (ou preocupados com a crescente lacuna entre pesquisa
terapia paliativa) vem da palavra latina “pallium” bem-sucedida sobre dor, de um lado, e
(coberta, casaco) e tem como objetivo aliviar a disponibilidade cada vez menor de opióides para os
última fase da vida se a terapia curativa já não for pacientes, principalmente de câncer, de outro.
mais possível. Os cuidados paliativos, a priori, são Houve uma segunda reunião em Genebra em 1984.
dirigidos para a qualidade de vida. Suas raízes estão Como resultado, foi publicada a brochura “Cancer
nas sociedades não cristãs, mas são vistos Pain Relief” (Alívio da Dor Oncológica) em 1986. Ao
principalmente como vindos das instituições distribuir essa brochura, a OMS fechou a lacuna por
medievais de cuidados paliativos. No entanto, os “obrigar” os sistemas de saúde a usarem opióides de
antecedentes históricos dessas instituições não eram acordo com a hoje amplamente conhecida “escada
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