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Dor (2008) 16
Pode perguntar-se se também não ficarão afec- da hipótese organogenética, isto é, da fatalida-
tados quando realizam trabalhos com pessoas de biológica, sob a máscara de uma confiança
que tem tanto sofrimento? Isto é muito verdade no progresso da ciência, escondia ao fim e ao
não só para os que lidam com doenças crónicas cabo uma perda da fé na criança.
ou agudas, mas também com os doentes psi- Opondo-se a esta forma de exclusão, a psica-
quiátricos. Representam um verdadeiro stress, nálise tentou apreender a posição subjectiva da
que toda a gente parece ignorar, como disse o condição humana. Assim, nestes últimos anos, so-
Dr. Hinshelwood, membro da Sociedade Britâni- mos animados com a convicção de que há uma
ca de Psicanálise e do Real Colégio de Psiquia- criança viva prisioneira nas malhas do silêncio e
tria e professor da Universidade de Essex. da introversão, até ao dia em que novos elementos
É sobre a Dor que estamos a falar: para uns vêm confirmar a justeza desta posição.
é o desespero e pode acabar com a morte... É extraordinário o que nos ensinam estas
mas como é isso da dor mental, que é o nosso crianças quando as seguimos durante anos,
campo de trabalho? tempo suficiente para saírem da sua concha au-
Em psiquiatria, nós sabemos que o drama tística, expondo uma grande riqueza interior la-
principal do psicótico, é não contar para Ser, tente e uma estrutura mental complexa, tradu-
nem sequer pode contar inteiramente com a fa- zindo uma posição subjectiva patética: é o caso
mília nem com os mais próximos, para os ajudar de Temple Grandin Ma vie d’autiste; de Donna
a sobreviver quando mergulhados num mundo Williams Si on me touche, je n’existe plus ou de
de angústias impensáveis, destrutivas! Birger Sellin Une ame prisonnière.
E no caso do autismo que nasceu em 1943, «Eu sinto um tormento com a ideia do fim
porque até aí confundido com a esquizofrenia e definitivo» e muitos outros escritos são revelado-
o atraso mental? As querelas à volta destes qua- res do sofrimento de um jovem autista que se-
dros são mais do que muitas. guimos durante vários anos.
Podemos hoje dizer que o autismo é uma daque- Certos artistas costumam dizer que os autistas
las palavras que incendeiam: os especialistas, a falam em poesia, o que nos leva a dizer - porque
imprensa, significando assim que ocupa um lugar não irmos à procura dessas cores de que falei
à parte entre as perturbações da saúde mental. no início, nos países de todos os continentes: do
Desde há mais de meio século, desafiando a azul turquesa e do vermelho da China, do azul
ciência, o enigma que paira sobre esta afecção, de Inverno e do branco da Patagónia; do verde
divide os terapeutas num clima de guerra de que baila a nossa frente, na Índia, ouvindo uns
religiões. A medicina e a biologia foram incapa- pássaros brancos, os egeritz, barulhentos como
zes de estabelecer uma etiologia segura, se as negras gralhas!
bem que haja a hipótese de uma causalidade No imenso mapa colorido de luz e sombra, o
genética, deixando o campo livre para certezas arco-íris está em todo o lado: entre as árvores,
contraditórias, exclusões sem apelo, polémicas manchas de amarelo brilhante, de roxo ou de
vãs e ódios irracionais. laranja resplandecente dos saris das mulheres,
Foram os psicanalistas que introduziram a pri- dos frutos que dormem nos ramos, dos aromas
meira concepção «humanista» do autismo, nos trazidos pela aragem, dos poentes.
anos seguintes à Grande Guerra, num tempo em Se ao chegarmos a Paris, é um amor à primei-
que a liberdade e o voo do pensamento e dos ra vista, pelo contrário, a paixão pela Índia é
ideais ia buscar a sua força às angústias e aos uma construção lenta dentro de nós, alimentada
sofrimentos que os homens acabavam colecti- pelo vento
vamente de viver! que vem do Oriente, filho do casamento do
Não foi por acaso que o escritor italiano Primo Mandovi e do Zuari, os rios que banham Pajim
Levi escreveu «Se isto é um homem», em que e dos sabores e aromas dos picantes do caril,
relata casos de comportamentos autistas em de- chacuti, ambotic, balchão, miscuti, acha...
terminados prisioneiros do campo de extermínio. A Índia é um país de incomparável beleza,
De igual modo, Bruno Bettelheim construiu toda onde o belo, o monstro e a dor estão de mãos
a sua teoria sobre o autismo com base na sua dadas, onde o sublime se encontra, lado a lado,
experiência em Dachau ou outro qualquer, em que com o pior que este mundo nos pode dar:
os prisioneiros viviam «situações extremas». – Possui uma extraordinária riqueza potencial
Eu penso que o drama vivido por estes dois e onde, no entanto, continuam a existir áre-
autores não foi ultrapassado porque ambos se as e grupos sociais da mais extrema pobre-
suicidaram no auge das suas carreiras. za, como nos bairros de lata de Bombaim
Todavia, em duas gerações, as coisas muda- e Calcutá.
ram e um outro saber nasceu neste mundo novo, – Um país de intensa espiritualidade e de vio-
em que o autismo mudou de estatuto: tornou-se lentos conflitos raciais, políticos e religiosos.
um handicap de natureza biológica, que afecta – Um país de santos como Ghandi, Aurobin-
os circuitos neuronais responsáveis no cérebro do e Ramakrishna e de outros líderes reli-
DOR pelo tratamento da informação, etc., etc. – Um país que fabrica foguetes e satélites,
giosos, por vezes odiosamente corruptos.
A crença generalizada dos médicos, dos me-
14 dia, do grande público pelo carácter científico mas onde oito de cada dez habitantes nunca