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M.J. Vidigal: A Terra dá Flores Quando Insultada pela Dor
viajou mais além até onde as carroças pu- barracas eram rejeitados, pelas zaragatas com os
xadas a bois os levavam. marinheiros que ela trazia do Cais do Sodré e,
Podem perguntar: mas para que está ela com além disso, os adolescentes queriam abusar se-
toda esta conversa? xualmente do «filho da puta». Como ela não tinha
Isto... apenas porque que temos que sair de onde deixar a criança, ficava escondida debaixo
nós próprios, do nosso mundo pequenino, do da cama, enquanto a mãe recebia os homens!
nosso país, para estarmos voltados para os ou- Quase por milagre, esse pedido foi rapida-
tros, quer sejam brancos, negros ou amarelos! mente satisfeito.
Agora vou construir uma breve narrativa, do- A Benvinda (ou Malvinda), maltratada pela vida,
lorosa e pungente, da vida de uma mulher que teve oportunidade de estabelecer, talvez pela pri-
nasceu em Portugal, mas que podia ter nascido meira vez, pensava eu, uma relação com alguém.
na Índia ou no Nepal. Manifestava a gratidão pela solução dada ao filho,
Ao longo dos nossos encontros, por vezes tive procurando-me com frequência, mesmo semanal-
desejos de fugir da situação penosa e perigosa, mente, numa atmosfera de respeito e tolerância.
de uma mãe e da sua criança de cinco anos. E Ficava à porta, apenas breves minutos, com o
era ao escutá-la que me apetecia fugir, para não pretexto de me dar notícias do filho.
ficar com sentimentos de fracasso que alterna- Sentia ternura por aquela mulher tão humilhada
vam com pensamentos mágicos de omnipotên- e maltratada. Sugeri aos técnicos do Centro que
cia e a ilusão de poder ajudá-los. não a pressionassem para libertá-la da prostitui-
Levanto-me para a receber, mas ela não me ção. Além de ser motivo de conflitos graves,
apertou a mão que lhe estendia e recusou sentar- parecia-me vital para ela manter esses contactos
se. Fiquei perplexa, sem jeito. Tenho na minha fren- com os homens, seria a forma de se sentir viva!
te uma criatura baixinha, com vestido grande que Cerca de dois anos depois, já tinha eu sido subs-
sobrava, de cor acastanhada, neutra; e um cabelo tituída por outra colega, e seis meses após o 25 de
cortado à tigela, que era o cunho dos loucos, das Abril, veio procurar-me no ex-Centro de Saúde
meninas que eu vi, muitos anos antes, internadas Mental Infanto-Juvenil de Lisboa (às Amoreiras),
no Hospital Júlio de Matos que, na década de 60, que se situava muito longe do Centro de Saúde.
encontravam-se no grau zero da existência. A recepcionista, telefonicamente:
Olhos negros, do fundo negro dos tempos, – Está aqui uma senhora muito esquisita para
fugidios, por vezes olhando intensamente como a Sra. Dra. mas ela recusou dizer o nome.
que à procura do que haveria de semelhante Entra a Benvinda no meu gabinete, aperta-me
entre nós. Voz rouca do álcool e das noitadas, a mão e senta-se na cadeira que lhe ofereço.
sem melodia e nas mãos uma Bíblia de capa UAH! Que mudança inesperada!
manchada e de cor indefinida. – Sra. Dra., houve uma revolução em Portu-
Como se fosse um tiro, emitiu raivosa e provo- gal, e eu quis vir aqui dizer-lhe que eu tam-
cadora: bém mudei! Agora vivo numa casa e traba-
– Sou uma mulher da vida! lho em limpezas, que a Sra. Assistente
Depois entendi, uma puta não estende a mão Social me arranjou!
a uma doutora! Nem mesmo se pode sentar na Não salvámos a mãe que morreu há uns anos,
sua frente! talvez de SIDA, mas salvámos o filho, que é hoje
Abandonada aos 18 meses numa valeta, não um operário especializado, casado e com filhos,
teve a sorte de uma Piaf, foi entregue a uma ins- não tendo sofrido o mesmo trajecto de miséria
tituição de religiosas, de onde saiu aos 18 anos e de exclusão social, como é comum vermos na
para a prostituição e na escala mais baixa. transgeracionalidade, fenómeno este que preo-
Agressivamente diz-me que as freiras eram cupa os especialistas, sociólogos, políticos.
más, não recorda qualquer nome, nem sequer Foi a intervenção de um trabalho em equipa
um sorriso que lhe iluminasse a infância. A inte- num Centro de Saúde Polivalente e da Instituição
riorização do drama original foi de tal modo per- onde a criança foi integrada, que tornou possível
feitamente conseguida, que teve uma infância esta evolução e salvar a geração seguinte!
que não podia ser salva. De acordo com Hermann Hesse a vida tem-
As enfermeiras e a assistente social do Centro me ensinado que a morte só está em nós, quan-
de Saúde, onde eu dava apoio, bastante toleran- do a atraiçoamos.
tes, não conseguiam nada dela, excepto para o Para finalizar, na nossa actividade, o sonho
filho. Recusava qualquer ajuda para ela própria não pode nunca morrer - são como as papoilas
(tirá-la da «vida», dando-lhe casa e trabalho). que (re)nascem todos os anos nos vales e coli-
Nada! A tudo recusava, como se mais valesse nas das nossas mentes...
o diabo que se conhece do que aquele que não
se conhece. Bibliografia
Esta criança seria um filho do acaso ou do Rey-Flaud H. L’enfant qui s’est arrêté au seuil du langage Comprendre
amor? l’Autisme. Édit. Flammarion, département Aubier; 2008.
Considerei legítimo o seu pedido: queria interná- Vidigal MJ, Guapo MT. Eu sinto um tormento com a ideia do fim definitivo DOR
- Uma viagem ao mundo do autismo e das psicoses precoces.
lo para que melhor fosse protegido. No bairro de Trilhos Editora; 2003.
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