Page 163 Guia para o Tratamento da Dor em Contextos de Poucos Recursos
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da dor, cerca de metade dos doentes refere dor celíaco. Esta é uma das poucas terapêuticas
moderada a intensa, com tendência para que a dor “neurodestrutivas” cuja utilização ainda é
intensa seja mais elevada no cancro do pâncreas, considerada útil atualmente. A destruição nervosa
esófago e estômago. noutras localizações demonstrou comportar maior
Causas típicas de dor no cancro digestivo incluem dano do que benefício para os doentes, tal como
estenose do delgado ou cólon, distensão da cápsula por exemplo a anestesia dolorosa, isto é dor no local
hepática por doença metastática do fígado e da desaferenciação nervosa.
obstrução do canal biliar ou do ureter por infiltração
de tecido neoplásico. Esta dor visceral é difícil de Como é que o doente
localizar, dadas as particularidades da inervação dos tipicamente descreve a dor
órgãos abdominais e pode surgir como dor referida,
por exemplo, dor na coluna dorsolombar, dada a intra-abdominal?
distribuição dos nervos intercostais e outros.
Porque é tão difícil para o Geralmente, a dor dos órgãos intra-abdominais tem
origem na estimulação das terminações nervosas e é
doente com dor visceral conhecida por dor somato-visceral, em oposição à
identificar o local exato da dor neuropática das lesões nervosas. A característica
da dor mais frequentemente referida pelos doentes é
dor? não ser bem localizada. Tipicamente descrevem-na
como sendo uma dor incomodativa ou pressão mas
por vezes em cólica. A intensidade da dor é avaliada
As fibras aferentes viscerais (fibras C nociceptivas) da mesma forma que para outros tipos etiológicos
convergem ao nível da medula, nos cornos dorsais; de dor, recorrendo à escala visual ou numérica
assim, a discriminação do local exato de origem do analógica.
estímulo doloroso é impossível. Um doente com
cancro do pâncreas seria, então, incapaz de dizer ao Qual a taxa de sucesso
seu médico que tem dor no pâncreas; referir-se-ia a
esta dor como dor na parte superior da barriga, com expectável com os métodos
irradiação em cinturão para as costas. À irradiação de analgesia mais
da dor dá-se o nome de “dor referida”.
“simples”?
Porque é importante
conhecer o percurso das A abordagem da dor em doentes com cancro
fibras nociceptivas dos digestivo é relativamente fácil. De acordo com a
literatura disponível, em mais de 90% dos doentes, a
órgãos viscerais? dor poderá ser controlada seguindo os algoritmos
mais simples de abordagem da dor. Estudos
observacionais de instituições de cuidados
As fibras nervosas aferentes que conduzem o paliativos, como o Nairobi Hospice no Quénia,
estímulo nociceptivo dos órgãos viscerais relatam uma taxa de sucesso que ronda os 100%,
encontram as fibras eferentes simpáticas antes de com um simples algoritmo de terapêutica da dor.
atingirem a espinal medula em nós chamados Tal como para toda a dor oncológica, o protocolo
“plexos nervosos”. Daqui, as fibras condutoras da de abordagem da dor segue as recomendações da
dor continuam, através dos nervos esplénicos pré- OMS e baseia-se na combinação de analgésicos
ganglionares, para a espinal medula (T5 a T12). Este opióides e não opióides, tal como o paracetamol,
percurso permite colocar uma interessante opção metamizol ou anti-inflamatórios não esteróides
terapêutica: interromper o percurso nociceptivo (AINEs). Co-analgésicos e terapêuticas invasivas
com um bloqueio neuroléptico ao nível do plexo