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Dor (2001) 9
micas dos sentimentos, da inteligência e da von- dade médica e na relação estabelecida entre o
tade, que forçosamente a integram, permitem doente e o prestador de cuidados.
analisar a organização espiritual do homem nos Em qualquer destes casos, e relativamente ao
sistemas afectivo, cognitivo, e volitivo. consentimento que é prestado para a realização
de actos médicos que consubstanciem violações
O sistema afectivo à integridade pessoal, a verificação de alguma
destas circunstâncias poderá ferir de invalidade
No que respeita ao sistema afectivo, são re- a expressão desse consentimento, retirando le-
levantes, para efeitos de cálculo de indemni- gitimidade ao prestador de cuidados médicos,
zações, as lesões ilícitas de uma constituição e podendo conduzi-lo a actuar de forma ilícita.
afectiva específica, nomeadamente o sofrimento Em consequência, o médico pode ver-se obri-
que surge em consequência de um acto ilícito. gado a pagar pelos prejuízos sofridos pelo doen-
A pessoa com dor, como vimos, sente-se doen- te, uma vez que este consentiu na lesão num es-
te pela intensidade das queixas, dependente pela tado de incapacidade (originado pelos estímulos
incapacidade que as mesmas provocam, e de- dolorosos condicionadores da livre expressão da
sanimada pela frustração de não poder realizar sua vontade) que pode conduzir à invalidação
os seus projectos pessoais perante a limitação do consentimento.
que sente em resultado do seu estado. De facto, a existência de dor como forma de
sofrimento, a que não foi prestado algum auxílio,
pode condicionar o doente a aceitar qualquer
O sistema cognitivo forma de intervenção ou procedimento com o
No que se refere ao sistema cognitivo, o en- objectivo de que possa ser aliviado nas suas
tendimento humano é juridicamente protegido dores, dando origem à expressão de um con-
não só na sua concretização pessoal mas sentimento viciado. Tal como uma forma de tor-
também no que respeita aos respectivos está- tura, o doente em sofrimento sente-se pres-
dios ou fases de desenvolvimento e evolução. sionado a fazer algo, mesmo que com pouco
De facto, não é descurada pela protecção ju- benefício terapêutico, na esperança não da cura
rídica a capacidade de perceber e entender os mas do bem-estar.
dados dos sentidos, de organizar e orientar sen- De tal importância se reveste a forma livre a
timentos face a finalidades determinadas, de esclarecida de consentir que, em ordem a ga-
memorizar, prever, e planear. Nestes termos, faz rantir um claro esclarecimento por parte dos in-
parte da personalidade moral dos indivíduos o divíduos, são por vezes estabelecidos deveres
direito à integridade e à autodeterminação co- específicos de informação no que se refere a par-
gnitiva. ticulares relações jurídicas. Por exemplo, é o Có-
Inclusivamente, a nossa regulamentação civil digo Deontológico da Ordem dos Médicos que
protege aspectos específicos do conhecimento nos diz, no n.º 1 do seu art. 38, que "o médico
ou da percepção humana da realidade, particu- deve procurar esclarecer o doente, a família ou
larmente no que respeita à disciplina dos negó- quem legalmente o represente, acerca dos mé-
cios jurídicos. todos de diagnóstico ou de terapêutica que pre-
Nestes termos, o Código civil descreve um tende aplicar", e continua, no art. 40 dizendo: "o
conjunto de situações que podem implicar uma prognóstico e o diagnóstico devem ser revelados
invalidação da actuação negocial, por se ter ba- ao doente".
seado, desde o momento em que é tomada até
ao momento em que já não faz sentido proceder O sistema volitivo
à retratação:
– Numa manifestação de vontade (declaração) Por último, quanto ao sistema volitivo, pro-
divergente dessa mesma vontade - é o caso da tege-se a liberdade, a fidelidade e a representa-
falta de consciência da declaração e da coacção tividade das declarações de vontade enquanto
física (previstas no art. 246); ou produtoras de actos ou negócios jurídicos, em
– Numa vontade cujo processo de formação relação com o que vimos anteriormente.
foi viciado - por haver sido formulada com base Assim, é juscivilisticamente tutelável não
em: apenas a livre actividade da vontade, mas
– Pressupostos errados (o CCP prevê o erro também a força de vontade em si mesma e nas
sobre a pessoa ou sobre o objecto do negócio suas diferentes formas e estádios, particular-
- art. 251, ou o erro sobre os motivos determi- mente a capacidade de decidir e de agir, cons-
nantes da vontade - art. 252); ou tituindo ilícitos civis tanto a lesão directa ou in-
– Outros motivos que podem impedir a to- directa das capacidades volitivas reais ou po-
mada de uma decisão consciente e livre (como tenciais, v.g., através de drogas pesadas e con-
é o caso da incapacidade acidental prevista no tinuadas e de intervenções cirúrgicas, ou do livre
art. 257). uso das mesmas capacidades, como o apro-
® No âmbito da protecção da saúde, o con- veitamento indevido do estado de falta ou dimi-
DOR sentimento dos doentes torna-se necessaria- nuição da vontade, particularmente nos casos
18 mente peça fundamental no exercício da activi- de menoridade, incapacidade ou inconsciência.
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