Page 22 Volume 10, Número 1, 2002
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A. Vale Ferreira: Um Olhar (breve) Sobre a Dor Mental
Quando o Dr. Arantes Gonçalves me desafiou objecto de um investimento intenso que poderemos
para escrever umas linhas sobre dor mental, confes- apelidar de “nostálgico”. É neste novo estado de
so que fiquei um pouco apreensivo em relação à coisas que temos de relacionar, para a compreender,
forma como iria explicitar o conceito de “dor men- a situação de dor. Assim, a dor corresponde ao
tal”, ainda longe de estar acabado. Também estou investimento “nostálgico” de um objecto de necessi-
mais habituado a “vivê-la” ao lado dos meus pacien- dade ausente, mas não nomeável porque ele ainda
tes e menos a tentar conceptualizá-la (tive que me não está constituído como perdido, surgindo a ruptu-
socorrer dos meus mestres!). Quando olhamos a dor ra das defesas.
psíquica (e o sofrimento) e tocamos a sua complexi- É no registo da metapsicologia que se tem de
dade, confrontamo-nos com uma das vivências men- entender aqui a dor, como efeito do traumatismo de
tais mais difíceis de lidar e compreender ao longo uma ausência (falta) sobre o plano da necessidade –
do percurso terapêutico e, porque não, ao longo de a dor substitui-se à angústia automática – e a angús-
todo o ciclo vital. tia como o sinal de alarme, consequência do perigo
Freud já olhou para a dor psíquica, considerando- da perda de um objecto de amor já constituído.
a um fenómeno semelhante à dor física e situando- Freud também faz a distinção entre desprazer e dor.
a, de maneira ambígua, entre o corpo e a psique. A dor é uma experiência de ruptura, a sensação tem
Define a dor como a consequência de uma fissura a primazia sobre a representação. O desprazer é o
na couraça protectora, o resultado traumático da investimento numa recordação, é o inverso, a repre-
ruptura das defesas. Também considera que a dor sentação tem a primazia sobre a sensação.
psíquica é uma reacção à perda do “objecto” e Mesmo que desprazer e dor sejam os dois provoca-
relaciona-a com a angústia, considerando “a dispo- dos por um acréscimo de “quantidades” no aparelho
sição para a angústia” a última linha de defesa, de psíquico, a dor possui uma qualidade especial que se
protecção. manifesta paralelamente ao desprazer. Se a experiên-
Pegando como ponto de partida a relação do recém cia traumática é fonte de dor, o desprazer, que é de
nascido com a sua mãe, Freud tenta desenvolver a facto comparável mas não igual à dor, será desenca-
hipótese duma angústia pura (automática) que corres- deado pela reprodução na memória do objecto causa-
ponderá miticamente ao traumatismo do nascimento e dor de dor. A distinção entre desprazer e dor está na
que seria, com efeito, anobjectal: uma situação onde base da divisão de territórios entre os reinos do prin-
angústia e dor aparecem simultaneamente, confundi- cípio do prazer e do Nirvana.
das, e que corresponderão ao momento onde, con- Grinberg também faz referência à conexão entre dor
frontado com a ausência da mãe, o recém nascido física e dor psíquica. Ele pensa que, se a dor aparece
está agora na impossibilidade de decidir se esta au- em qualquer situação de luto devido à perda do
sência é temporária ou definitiva. objecto, deve-se a que esta produz uma experiência
Mas, na realidade, esta confusão entre angústia e que, na fantasia inconsciente, implica um ataque con-
dor reflecte menos a relação do recém nascido com tra o Eu (em particular contra o eu corporal, que
o “objecto” do que uma indecisão teórica freudiana. reproduz a situação traumática do nascimento); este
Como refere Geberovich (1984), incertitude da teoria ataque produz dor física que, por sua vez, é incorpo-
que se origina na não distinção entre objecto de rada como dor psíquica.
necessidade e objecto de pulsão, e que pode estar Joffe Y Sandler assinalam um aspecto adicional da
sobreposta pela proposição seguinte: A dor corres- dor psíquica ligada à perda do objecto. Eles conside-
ponderá à ausência do objecto de necessidade, ob- ram que a dor psíquica é uma discrepância entre o
jecto ausente mas ainda não constituído como perdi- estado real de si mesmo por um lado, e um estado
do, enquanto que a angústia (sinal) decorrerá da ideal de bem estar por outro. Quando se perde um
ausência do objecto de amor, já constituído como objecto amado, não só temos a perda do objecto, mas
perdido. A dor é a reacção própria à perda do também a perda do aspecto complementar do objecto
objecto, a angústia a reacção ao perigo que compor- em si mesmo e do estado de bem-estar afectivo que
ta essa perda. está intimamente ligado a ele.
Esta hipótese intermediária pode, por si só, fazer- Winnicott fez referência a este tipo de experiência
nos compreender como Freud trata a questão e dis- emocional na terapia da seguinte maneira: Na prática
tingue dor e angústia. O jogo de presença/ausência psicanalítica, as mudanças positivas que se produzem
que acompanha o movimento de separação entre a nesta área podem ser muito profundas. Elas não de-
mãe e o recém nascido permite, diz Freud, que este pendem do trabalho interpretativo. Dependem do facto
sinta, em relação à sua ausência repetida, “qualquer do terapeuta lograr sobreviver aos ataques, o que
coisa como a nostalgia sem desespero”. E ele conti- inclui a ideia de ausência.
nua, “a situação na qual ele experimenta a ausência Pontalis também considera que a dor psíquica
da mãe estando mal compreendida (a criança ignora está associada à perda do objecto. A dor provem
se esta ausência é temporária ou definitiva) não é do facto de que o objecto foi perdido de maneira
para ele uma situação de perigo, mas uma situação irremediável mas mantém-se eternamente: “quando
traumática, se nesse momento ele sente uma neces- existe dor é o objecto ausente, perdido, o que está
sidade que a mãe deverá satisfazer”. As situações de presente; é o objecto real, presente, o que está
satisfação repetidas criaram este objecto (na realida- ausente”. DOR
de ele ainda não está criado), a mãe que no caso da Como refere Betty Joseph (1988), alguns doentes
necessidade (ainda não é um objecto de amor) é descrevem-nos um certo tipo de dor que é, do ponto 21
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