Page 27 Volume 10, Número 1, 2002
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tes do quadro de dor e que são, em geral, negados, mas sim a presença de traços de personalidade, como
excluídos ou minimizados pelo próprio doente na sua histéricos, hipocondríacos, masoquistas, obsessivos,
história pessoal. narcisistas, borderline, que influenciam a reacção da
Nestes, a interacção com a dor é, por vezes, o factor pessoa na presença de dor, como se esta fosse o
mínimo para a exacerbação de um neuroticismo já accionar de algo que estava latente, ou que põe a
existente ou constitui a ocasião para a expressão de descoberto uma incapacidade de enfrentar uma ame-
uma neurose latente. A dor é em geral produto da aça, ou abre uma ferida que não mais cicatriza, reve-
psicopatologia em causa ou da acção de factores lando em todos o uso da dor como uma experiência
psíquicos e somáticos, sendo em geral a doença somá- psicológica que se funde com o próprio e o afecto
tica se existir mínima. A persistência das exacerbadas pessoal de tal modo que, por exemplo, a sua presença
queixas de dor e a sua manifestação verbal e compor- pode constituir um benefício, a sua ausência pode
tamental exuberante é a evidência da psicopatologia constituir uma grave ameaça, acontecendo como
em causa. São frequentes repetidos exames subsidiári- exemplo, o doente perante a perspectiva de um trata-
os, múltiplas consultas, abuso de medicação, grande mento bem sucedido recusa-o ou os seus resultados
inactividade e incapacidade, e a vida do paciente são idiossincráticos. O estado psicológico do doente é
centrada na dor. Este grupo é de grande risco para a revelado pelo corpo, por vezes por incapacidade de
cronicidade de dor, maior prejuízo funcional psicossoci- experimentar e expressar emoções ou por negação de
al, maior inadaptação e perturbação afectiva, assim qualquer conflito emocional, por vezes de tal modo,
como menor controlo da sua condição e insucesso como se o doente seleccionasse uma parte de si
terapêutico. É também o grupo de doentes em que a próprio ou da sua actividade mental, deixando-se con-
negação dos factores psicológicos é mais evidente e, duzir num prejuízo catastrófico, por vezes até mutilan-
por isso, mecanismo de defesa e sintoma. te, mas que mantém a satisfação de necessidades
Por último, temos as pessoas com diagnóstico pas- psicológicas ou o conflito emocional fora do seu alcan-
sado ou actual de perturbação psiquiátrica, até em ce. Nestes a expressão da dor no corpo é a projecção
tratamento psiquiátrico e que padecem de um quadro física e psíquica da dor mental. Em casos graves a dor
somático simultâneo de dor, em que a dor e a psico- somática é mais suportável que a dor mental, noutros
patologia se mantêm aparentemente separadas ou alivia-a.
apenas se queixam de dor se esta for especificamente Verificamos, por exemplo, que pacientes com difi-
questionada. São os casos de doenças psiquiátricas culdades relacionais familiares exageram o comporta-
endógenas em que a inter-relação entre a psicopatolo- mento de dor para as afastar, ou que doentes com
gia e a dor se dá fundamentalmente ao nível da sentimentos de grande culpabilidade punem-se atra-
percepção de dor e do limiar de dor. A dor como vés da dor ou, noutros casos, a raiva contra uma
manifestação de doença somática pode frequente- atitude de um membro conjugal é, após o início de
mente ser irrelevante face a gravidade da lesão. Ou uma síndroma dolorosa, canalizada através das persis-
outras perturbações mentais em que os doentes se tentes queixas, incapacidade e pedidos de ajuda,
mantêm fiéis ao seu trajecto de doença psíquica e instrumentalizando a dor, mas mascarando a agres-
que, embora tenham frequentemente dores, não fazem são. Noutros, as necessidades de dependência fazem
destas a sua principal queixa. Os sintomas psicopato- com que usem a dor como autentificação dos seus
lógicos são prevalecentes ou associados com a dor e pedidos de ajuda. Por vezes, o clínico é também parte
não reactivos. integrante dos mecanismos psicológicos usados pelo
É importante salientar o caso da simulação de dor doente através da frustração, insatisfação, derrota que
em separado, já que este faz parte de uma farsa com o doente provoca nele, do insucesso constante dos
benefícios dissimulados, em que a pessoa está cons- tratamentos, mantendo em simultâneo o doente, as
cientemente a enganar o médico com o objectivo de solicitações de ajuda que rejeita para satisfação da
alcançar um benefício objectivo, portanto não é uma sua dependência, ou por falta de confiança, ou por
perturbação mental. raiva devido a tratamentos e intervenções prévias.
Temos verificado na prática clínica que os pacientes De acordo com alguns traços de personalidade,
que exageram nas queixas de dor crónica têm deter- com proeminência de culpa, antecedentes de sofri-
minados traços de personalidade, baixa auto-estima, mentos ou intolerância ao sucesso, impulsos agressi-
que se sentem rejeitados ou têm uma vida não gratifi- vos não satisfeitos, sentimentos de rejeição ou de mal-
cante, têm autocontrole externo, a presença de confli- amados, foi proposto que estes doentes tinham uma
tos emocionais, têm dificuldade pré-morbida de adap- propensão para a dor (pain-prone patients), usando-a
tação ou de funcionamento psicossocial, antecedentes como mecanismo defensivo ou como meio de satisfa-
de perdas e carência de afecto, são por vezes vítimas ção das suas necessidades. Por vezes, no seu extre-
de maus tratos físicos ou têm elementos na família com mo, o sofrimento é aceite como amor, a dor é motivo
doenças crónicas ou alcoolismo, por exemplo. válido para a obtenção da gratificação de dependên-
Os diagnósticos psiquiátricos mais comuns são as cia inconsciente.
perturbações afectivas e as perturbações somatofor- Na depressão são muito frequentes as queixas de
mes, e embora menos frequentes também as perturba- dor. Portanto, dor e depressão estão frequentemente
ções factícias com sintomas físicos e as perturbações associadas e influenciam-se reciprocamente. A dor
DOR da personalidade. crónica causa depressão e é também a expressão
De facto, as perturbações de personalidade não são
somatizada de depressão. Esta associação frequente
26 o diagnóstico frequente no doente com dor crónica, entre a experiência de dor e depressão é explicável já

