Page 26 Volume 10, Número 1, 2002
P. 26
Dor (2002) 10 A. Gonçalves: Dor e Patologia Psiquiátrica
Dor e Patologia Psiquiátrica
A. Gonçalves
A actividade do psiquiatra numa unidade de trata- Não podemos dicotomizar a dor crónica e, por
mento de dor permite observar os pacientes com pato- isso, esta não deve ser sempre considerada como
logia psiquiátrica de outro ângulo, o somático, e a uma perturbação de adaptação ou reacção a uma
interacção entre o biológico, o psicológico e o social, condição física ou, numa posição mais extrema, uma
bem como preencher uma imperiosidade clinica funda- perturbação psiquiátrica. Na nossa experiência, o
mental na dor, que é o diagnóstico psiquiátrico positivo, modelo biopsicossocial é o que melhor se aplica à
e não apenas por exclusão de causa orgânica e proce- complexidade dos múltiplos factores presentes no
der à orientação terapêutica mais adequada. doente com dor.
Apesar da dor ser muito frequente no paciente com Os pacientes, em termos de características gerais,
doença psiquiátrica, raramente é a queixa fundamental podem ser distribuídos em quatro grupos.
apresentada na consulta de psiquiatria. Na experiên- Podemos referir que temos um grupo de doentes
cia na Unidade de Tratamento de Dor do Hospital psicologicamente saudáveis e que, ao enfrentarem
Geral de Santo António, desde há cerca de 8 anos, uma patologia física com dor prolongada ou crónica,
temos verificado o inverso, isto é, que neste contexto, podem evoluir apresentando temporariamente altera-
os doentes com patologia psiquiátrica apresentam ção do seu estado psicológico devido ao estado da
como primeira queixa a dor. Observamos também que doença, a interrupção do trabalho, a prejuízos funcio-
o doente com patologia psiquiátrica comunica com os nais, em que a ansiedade, a hipocondria ou a depres-
outros e o clínico através da dor. são, podem necessitar de intervenção psicológica a
O doente assume cognições e comportamentos ob- tempo de evitar a paragem do processo de adaptação
serváveis num doente com patologia somática e os equilibrado. Estes doentes, em geral, compreendem o
sintomas psicológicos são desvalorizados ou confundi- seu estado, aceitam a intervenção e colaboram, no
dos pelo clínico, como reacção à dor, perpetuando-se sentido da melhor adaptação, aceitando as perdas, as
o quadro de dor crónica com agravamento de incapa- modificações da sua vida e procuram as melhores
cidade, iatrogenização, que vai impossibilitar o suces- soluções para a redução do seu prejuízo funcional e
so de uma intervenção multidisciplinar na dor. Assim, melhor estado de saúde.
frequentemente, os pacientes com dor e psicopatolo- Temos, depois, um outro grupo de pessoas em que
gia não são identificados, não são adequadamente a dor sendo de etiologia somática está associada a
tratados e são tardiamente referenciados. factores psíquicos internos como a angustia de sepa-
Em estudo realizado na nossa unidade, verificamos ração, raiva, frustração, medo do sofrimento, ou stres-
que a morbilidade psiquiátrica é de 55%, sendo signi- santes de ordem externa, como dificuldades conjugais
ficativamente superior ao valor encontrado na popula- ou a perda de uma pessoa significativa, anteriores ou
ção geral e na clínica geral com a mesma metodolo- simultâneos à dor, que manifestam reacções psicológi-
gia. Também verificamos que as perturbações cas inadaptadas face à dificuldade de resolução ou
afectivas, depressão e distimia contribuam para 55% incapacidade de os ultrapassar podendo, também,
dos diagnósticos psiquiátricos. Na maioria dos casos, exibir transtorno do humor ou de comportamentos,
trata-se de comorbilidade psiquiátrica e patologia or- inadaptação à dor, e que necessitam de intervenção
gânica, sendo difícil discernir nitidamente, em muitos psicoterapêutica. Neste grupo, os comportamentos de
casos de dor, se a etiopatogenia primária é psíquica doença e de dor são exacerbados face à patologia em
ou somática. causa, com fixação aos sintomas, e a dor tem um
A dor determina uma reacção psicológica global da papel funcional ou simbólico. Apresentam baixa moti-
pessoa que interage com a experiência psicológica vação para o tratamento ou para a actividade, poden-
intrínseca à própria dor. Esta reacção pode estar total- do evoluir, se persistente, para a insuficiência de fun-
mente congruente com a patologia clínica, promoven- cionamento psicológico e social, desvio psicopático
do uma adaptação ou, pelo contrário, incongruente, da personalidade ou a estabelecer-se um quadro psi-
agravando e dificultando a abordagem e tratamento do copatológico. A evolução crónica de dor pode distan-
quadro clínico. Esta última situação pode evoluir para ciar-se da origem somática e pode apresentar-se como
uma síndroma de dor crónica. no terceiro grupo.
Temos um terceiro grupo de pessoas, cuja condição
psicológica prévia ao aparecimento de dor é, já de si,
Médico especialista em Psiquiatria pela
Ordem dos Médicos psicopatológica, podendo, no entanto, até esse mo- DOR
Director da CLINIPSIQUE mento, não ter tido qualquer tipo de manifestação
Clínica de Dor do Porto relevante ou ter antecedentes psicopatológicos distan- 25

