Page 24 Volume 10, Número 1, 2002
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A. Vale Ferreira: Um Olhar (breve) Sobre a Dor Mental
ção e processamento usado na “digestão” mental das tasias de ataque ao terapeuta ou a evasão da
suas experiências está, em maior ou menor grau, prisão que construíu para si mesmo através da
danificado. destruição dos seus perseguidores que são, em
Parecem existir duas condições prévias nos doen- última instância, partes da sua própria personalida-
tes que experimentam esta forma de dor. Uma delas de. A disfunção básica resulta desses ataques que
consiste num mito pessoal sobre o desastre psíquico o indivíduo faz a si mesmo. Vários são os factores
final, que parece assentar numa confiança precária que podem despoletar a desproporção entre a ca-
nos recursos internos, muitas vezes expresso por pacidade mental e a experiência emocional, mas o
afirmações do género “eu não vou aguentar”, “não resultado é sempre o mesmo – a tolerância e a
sou capaz”, “não vale a pena”, “vou enlouquecer”, capacidade da pessoa são vencidas e surge a
“vou morrer”, “não tenho cura”, etc. A outra resulta do impotência, a dor, o desespero. Só um milagre a
sentimento de ter perdido o direito à própria vida, não pode salvar. Deixado entregue a si mesmo, o indi-
a merecer e, por consequência, a recusa da sua víduo, como todos os seres vivos, procura evadir-
própria integridade pessoal, da consciência de si, da se, mesmo à custa de um processo de “autotomia”.
sua identidade, muitas vezes revelado por expres- O que é “autotomizada”, destruída, é a própria
sões que demonstram um sentimento de se ter sido capacidade de ter consciência daquilo que provo-
liminarmente “amaldiçoado” ou pelo seu “pecado ori- ca a dor insuportável. Essa capacidade (função do
ginal” (um deficit: não ser suficientemente competen- pensamento) destruída para aliviar a dor é a mes-
te para ter o amor do outro), ou pela sua vivida ma capacidade indispensável para construir uma
malvadez, ou pelos seus sentimentos de cobardia saída, pelo que tem que ser reparada, através da
existencial. transformação do terror em compreensão. Se a dor
Na área da saúde mental a disfunção que encon- mental pode ser sofrida, pode ser pensada. Mas
tramos como predominante é resultado de um círculo esta transformação não deve ser devolvida à pres-
vicioso. O conhecimento do novo (nunca vivido, nun- sa pois é necessário avaliar a capacidade do doen-
ca sentido), ocorrência inevitável no ciclo vital, gera te para suportar o possível, devendo a quantidade
um nível de experiência emocional que ultrapassa a ser mínima. Blaya-Perez sugere, a propósito, que
capacidade do sujeito (ou porque não tem uma capa- algo que se aproxima de um princípio seria sempre
cidade adequada, ou porque a carga é excessiva), devolver um pouco mais do que a pessoa deseja
provocando uma dor mental insuportável que é resol- receber, provocando um certo grau de sofrimento
vida através de ataques fantasiados do próprio sujei- inevitável no crescimento, mas evitando as grandes
to à sua capacidade de sentir, de pensar (simbolizar), porções que não só não são assimiladas como
de descriminar e de agir. Quando uma dor não é estimulam uma inapetência não desejada. A função
sofrida, não pode ser pensada. A dor só pode ser da terapia é, portanto, permitir que o Eu diminua os
eliminada atacando-se a estrutura da mente. Esses seus sistemas de controle omnipotentes para que
ataques, uma espécie de “autotomia” do pensamen- possa restaurar-se a capacidade de sentir dor sem
to, proporcionam um alívio imediato do sofrimento a ameaça de aniquilação. O progresso no processo
mental provocado por esta dor, mas condena o “au- de reintegração ocorre mediante o encontro com a
totomizado” a um estado de imobilização que funcio- dor mental. A dor que no mapa da psique se
na como uma prisão, impedindo a sua evolução, o encontra nas fronteiras e na união de corpo e
seu crescimento emocional. Os mecanismos de defe- psique, de vida e morte (Pontalis, 1981). “O doente
sa visam negar esta vulnerabilidade, os sentimentos que agora começa a ter a possibilidade de sofrer
de culpa e responsabilidade pela própria vida, a dor estará também apto a sofrer prazer” (Bion).
consciência, o confronto com a realidade da separa- A impotência anda sempre de mãos dadas com
ção, da individuação (“como um novo nascimento”), a omnipotência, como protecção mágica que é
sobretudo porque a dor é inevitável!... Ao repudiar a capaz, na fantasia, de operar milagres que elimi-
dor, corta também a possibilidade da gratificação e nam o sofrimento com a mesma rapidez que o
assim destrói a consciência da vida. ilusionista faz desaparecer um objecto. A relação
A disfunção é o resultado da desproporção entre impotência-omnipotência (ou entre as faces do amo
a capacidade de conhecer-se e o impacto que e do escravo, que existem simultaneamente em
recebe a personalidade com esse conhecimento do cada um de nós), expressa a intolerância humana,
novo, ou o retorno do conhecimento antigo que fora em geral, ao sofrimento mental, sobretudo a dor
anteriormente reprimido e/ou projectado. Ao tentar que decorre da tomada de consciência da realida-
fugir da dor mental pelo ataque à própria capacida- de própria (interna) e da do outro (externa), ou
de mental (sentir-se, pensar-se, sonhar-se, descri- seja, a dor mental.
minar-se, agir) o paciente diminui a sua capacidade Embora a nossa reflexão se faça muito a partir
e fica prisioneiro da sua solução – o sintoma (em- das pessoas doentes que precisam e pedem os
bora este movimento seja uma tentativa de adapta- nossos cuidados, qualquer pessoa experimenta, a
ção, não equivale a um sucesso adaptativo mas longo do seu ciclo vital, situações difíceis, geradoras
sim, a um insucesso). Agora é preciso organizar de dor mental. Temos todos, no fundo de nós, um
explicações racionais para a sua disfunção. Essas núcleo de desespero secreto que escondemos cui-
fantasias são em geral do tipo persecutório e nelas dadosamente em nós mesmos mas que é susceptí- DOR
a ideia de cura está relacionada com duas alterna- vel de surgir em certas circunstâncias difíceis da
tivas. Apoderar-se do que lhe falta através de fan- nossa vida. 23
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