Page 23 Volume 10, Número 1, 2002
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Dor (2002) 10
de vista deles, indefinível. A qualidade ou natureza da sensação de rasgão, como uma espécie de disjun-
dor não parece compreensível para eles e frequente- ção traumática, é por vezes tão vivida, tão profunda-
mente sentem que não conseguem transmitir a expe- mente sentida que se confunde com a dor de uma
riência ao terapeuta. Pode parecer quase física ou ferida física. É como se estes pacientes tivessem
ser relacionada com uma sensação de perda, mas sentido fisicamente o brusco arrancar de um cordão
não é algo que se definiria como depressão; pode umbilical.
conter sentimentos de ansiedade, mas não ser vista Com efeito e como refere Jean Bégoin (1989),
apenas como uma sensação de ansiedade. Este fe- nalguns casos o Eu não parece estar capaz de por
nómeno, aparentemente indefinível, é um tipo de em acção o sinal de angustia, do perigo, que a sua
movimento e um tipo de dor que parecem ser expe- organização defensiva habitual lhe permite desen-
rienciados em períodos de transição entre sentir a dor cadear, visto que o perigo é mais maciço, ele é
e sofrê-la – uma situação limítrofe. É um tipo de dor sobretudo da ordem do terror, com o seu carácter
que emerge quando há um importante impacto no paralizante e menos do medo. Não se trata mais de
equilíbrio mantido pela personalidade – um movimen- um medo vivido no seio da vida psíquica mas de
to e alteração no estado da mente. Frequentemente é um perigo ameaçando a existência da própria vida
sentida como quase física, apesar do doente saber psíquica, um perigo de morte psíquica. Este perigo
claramente que não está a descrever uma condição mantém-se ligado à angustia de separação, mas de
física, mas reconhecidamente mental. Ela é experi- uma intensidade particular e provocando, em vez
mentada como no limite entre o mental e o físico. de uma organização defensiva, uma sideração de
Penso que estamos a falar de dor mental (ou psíqui- todas as defesas psíquicas salvo, eventualmente, o
ca, se preferirem). recurso a um retraimento de toda a relação objec-
A dor mental não é nem bem ansiedade, nem bem tal. A defesa utilizada, pelo menos em certos ca-
depressão. É uma expressão de sofrimento psíquico, sos, pode então ser uma defesa do tipo autístico,
mais do que angústia. Está ligada a uma maior cons- como mostra nestas situações a natureza catastró-
ciência do Eu (Self) e da realidade interna de outras fica da angústia de separação que desperta imedi-
pessoas, assim como se associa com uma sensação atamente o terror.
de existir separadamente. A modalidade depressiva que acompanha a existên-
Sentimentos suicidas são muito marcantes em doen- cia de um núcleo de terror ameaçando a própria vida
tes emergindo destes estados de evitamento pois a psíquica é o desespero: o sujeito tem o sentimento de
vida em si mesma é o que pretendem evitar, já que a não poder sobreviver em lugar de viver. No Traité du
vida, viver, relacionar-se é exactamente o que incita Désespoir, Kierkegaard refere que “o desespero é a
dor e toda uma gama de sentimentos até agora evita- doença mortal” no sentido em que a tortura é de não
dos. A destruição do Self e da mente que experimenta, poder morrer, de querer, de viver, de sentir e não
é muito mais atraente. encontrar as condições de ambiente mínimas indis-
A dor mental não é sentida como culpa em relação pensáveis ao seu desenvolvimento (novamente Kierke-
a impulsos, nem se refere a cuidados com outros gaard, “O desesperado é um doente da morte... A
objectos, ou à perda de um objecto. Não possui essa morte não é aqui o termo do mal, ela é um fim
clareza. A natureza da dor é mais desconhecida, interminável”).
mais crua, mais associada com o emergir num mundo A clínica revela muitas vezes que estas experiên-
vivo. A experiência de dor não é ainda uma “dor no cias são repetições de um anterior estado arcaico
coração”, embora frequentemente referida ao cora- de depressão primária devido à perda do objecto
ção. Contém, no entanto, os primórdios da capacida- primário (mãe incapaz de absorver e apaziguar o
de para senti-la. medo de morrer do seu filho, e este, incapaz de
Este tipo de dor tem uma qualidade de incompre- conferir sentido aos dados sensoriais das suas ex-
ensibilidade para o doente e para o terapeuta. periências emocionais), resultando numa falha bási-
Parece ser uma dor ligada a pessoas e à vida, ca no processo, referido por M. Mahler, de separa-
relacionada com o nascimento, o desenvolvimento, ção/individuação, expressa por uma grave
o crescimento. ansiedade de separação não acompanhada por uma
Ela é mencionada com alguma frequência, sobre- suficiente individuação. O sofrimento psíquico mais
tudo em doentes que sofrem de perturbações men- profundo parece ser aquele de não ter podido en-
tais primitivas. Esta dor parece exprimir uma sensa- contrar, nos primórdios da vida psíquica, as condi-
ção catastrófica de descontinuidade do Eu, de uma ções suficientemente boas para que a vida psíquica
queda no abismo em direcção ao vazio, ao nada, ao se pudesse desenvolver de uma forma mais autóno-
sem sentido, como se de repente deixassem de ter ma, mais livre.
chão. É vivida como um súbito e inesperado con- Uma intensa angústia ao estranho, ao desconheci-
fronto com a realidade, o ser separado, arrancado e do, ao novo, cobrindo a ansiedade de separação
não ter qualquer fonte interna de segurança. Repre- (muito frequente quando se dão lacunas na terapia, ou
senta a fronteira entre o viver e o morrer psiquica- quando se aproxima o seu fim), é um sinal da possibi-
mente, o derradeiro estado traumático de desorgani- lidade da experiência de dor mental. Os pacientes
zação, terror, caos, aleatoriedade e entropia, estando com perturbações emocionais primitivas apresentam
DOR portanto ligada ao medo de morrer, aos sentimentos uma hipersensibilidade generalizada e específica face
a praticamente todas as experiências emocionais, isto
de fracasso de continuar a ser e de perder o contro-
22 le (é como se já não se pudesse voltar atrás). Esta porque o seu equipamento mental básico de ordena-

