Page 30 Volume 10, Número 1, 2002
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A. Gonçalves: Dor e Patologia Psiquiátrica
Outro diagnóstico psiquiátrico, que mais frequente- diferenciação com a presença de benefícios inconsci-
mente surge como hipótese de diagnóstico, é a pertur- entes, como na conversão ou na somatização, sendo,
bação factícia com predominantes sinais e sintomas por vezes difícil, distingui-las. Os sintomas produzidos
físicos. Nesta o doente produz intencionalmente os cessam, em geral, quando são atingidos os benefícios,
sinais e sintomas de doença física, cujo único objecti- ou também quando os riscos de exames, intervenções
vo aparente é assumir o papel de doente. O nome são elevados ou quando não estão a ser observados.
conhecido para esta perturbação é de síndroma de Algumas características, como as queixas de dor se-
Munchausen, ou outros como doente profissional. A rem vagas, mal definidas, incoerentes, má colabora-
característica essencial do quadro clínico é a capaci- ção na avaliação, diagnóstico e tratamento, apresenta-
dade do doente apresentar sintomas e sinais de tal ção em contextos de litígio ou de indemnização com
modo reais e sugestivos de uma patologia que conse- solicitação de parecer, são frequentes, mas não é uma
guem a admissão em hospitais, serviços de urgência, situação fácil de reconhecer, que exige uma avaliação
em internamentos e, não menos frequente, para inter- cuidada e acompanhamento, até porque outras condi-
venções cirúrgicas. As dores são um dos sintomas ções clínicas podem estar associadas. Se existe sus-
usados para receber atenções dos clínicos, medica- peita de simulação, é necessário grande cuidado na
ções e múltiplos exames e intervenções. São, no en- informação transmitida, ou na colocação antecipada
tanto, raros os casos em que o quadro clínico se de hipóteses de diagnóstico e tratamento na falta de
apresenta bem definido ou apenas com o sintoma de evidência clínica.
dor e, assim, não é evidente o seu diagnóstico. Muito Com a descrição sumária de algumas entidades
mais frequente na área de dor é a presença de ante- psiquiátricas frequentes na consulta de dor, não ficam
riores patologias físicas mínimas funcionais que são esgotadas as possibilidades de diagnóstico pois, por
alvo de atenção clínica, desenvolvendo-se o sobrepon- exemplo, outros têm sido verificados, como o alcoolis-
do-se este quadro clínico. Na experiência do autor, mo, a demência, perturbação delirante e perturbação
estes casos melhoram artificialmente, quase sempre de identidade. É importante salientar que, no paciente
temporariamente, com os internamentos e interven- com dor crónica, estão frequentemente presentes fac-
ções que por vezes cirúrgica para, após se reiniciar o tores psicológicos ou psicopatológicos que dificultam
mesmo trajecto, com os mesmos sintomas ou outros, muito a tarefa do clínico assistente na avaliação e no
com outros clínicos, de tal modo que casos há em que, tratamento da dor, importa compreender que o modelo
em 10 anos de trajecto, tenham sido submetidos a biomédico de doença tem limitações na área da dor e
número idêntico ou superior de intervenções cirúrgi- ter a noção que é necessário suspeitar e avaliar os
cas. Se sentem próximo o desmascarar da sua situa- factores psicológicos ou diagnósticos psiquiátricos no
ção, abandonam o tratamento ou, se desafiados nos doente com dor, sobretudo quando o doente não tem
seus sintomas, provocam-nos em casos extremos com lesão que justifique a dor ou apresenta o comporta-
actos mutilantes, traumáticos ou fármacos, agravando mento anormal de doença ou evolução arrastada de
o estado clínico, ameaçam com litigação e colocam dor após tratamentos adequados. A conclusão de que
em causa a competência clínica. Estes doentes fixam- se trata de um caso psiquiátrico não deve ser por
se não no objectivo de se verem aliviados da sua dor, exclusão ou por intuição, mas de acordo com critérios
mas nos meios de diagnóstico e tratamentos, isto é no de diagnóstico presentes na observação do doente.
processo de avaliação e tratamento. Nesta área complexa e difícil, os sinais e sintomas da
Outro aspecto relevante na consulta de dor, dada a presença de factores psicológicos não são óbvios. Da
subjectividade da experiência de dor, é a simulação avaliação mais adequada, se necessário por um psi-
que merece atenção clínica, embora não seja uma quiatra familiarizado com a dor crónica, vai depender
perturbação psiquiátrica, já que é uma farsa, isto é, o o trajecto do paciente com dor, quanto a intervenções
doente voluntariamente e conscientemente falsifica os médicas ou cirúrgicas e iatrogenização, adaptação e
sintomas e sinais de doença para obter um benefício incapacidade. No entanto, uma equipa multidisciplinar
como um ganho financeiro ou evitar um trabalho. de uma unidade especializada na dor, em que o psiqui-
Também esta situação pode estar presente nas atra é elemento integrante, é a que tem melhores con-
consultas de dor e que é complicada, sobretudo na dições para avaliar e tratar o doente como um todo.















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