Page 36 Volume 10, Número 1, 2002
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T. Gama: Parece que Engoli a Gripe
de tempo, pois estamos a dar início a uma relação O processo psicoterapêutico decorre à velocidade
que poderá vir a não ser continuada – quando não há do material que a criança traz. Durante as sessões, e
indicação para psicoterapia, ou havendo, os pais não porque a expressão verbal não será o modo de comu-
a aceitam – o que poderá vir a transformar-se num nicação ideal da criança, temos uma ludoteca ao seu
outro elemento causador de angústia, por um investi- dispôr para que esta, por intermédio do jogo, vá
mento ao qual não se vai dar continuidade, o que exteriorizando as suas angústias. A actividade lúdica
poderá ser acusador de sentimentos de abandono. também permite que a criança contacte com os ele-
O processo de avaliação é concluído com uma entre- mentos que lhe causam maior sofrimento de uma
vista de devolução, na qual estão presentes os pais e forma mais tolerável.
a criança. Nesta sessão, depois de se preceder à Como receptores do sofrimento da criança, procura-
reformulação do pedido, procuramos conter as angús- mos descodificá-lo e depois elaborá-lo, devolvendo-o
tias apresentadas através da comunicação do psicodi- ao paciente em doses adequadas para que este o vá
agnóstico, em que procuramos relacionar os processos recebendo, conseguindo, assim, lidar com ele. O sofri-
psicológicos associados à formação do sintoma, por mento começa a ser pensado e, portanto, elaborado,
intermédio da nossa compreensão da situação clínica. ou seja, a dor para além de ser sentida passa, tam-
Se a criança tem indicação para psicoterapia, nessa bém, a ser sofrida. A dor física desaparecerá, num
mesma sessão, falamos das regras inerentes a este ideal teórico, e o crescimento surge.
trabalho de cariz mais profundo e, portanto, prolonga- Por vezes, a sintomatologia desaparece quase que
do no tempo. As regras/setting cujo rigor procura a imediatamente e a tendência será a de pedir o termi-
manutenção de um elemento permanente, - a relação nus do tratamento. Contudo, o facto da expressão
terapêutica – na multiplicidade de variações diárias física da dor ter desaparecido não significa que a
com que nos deparamos, têm como objecto principal causa da dor mental foi pensada ou elaborada, pelo
o paciente. Assim é explicado que a criança usufruirá que o tratamento se mantém, sob pena desta voltar a
de um espaço só seu, onde poderá abordar todas as aparecer mais tarde com uma expressão mais grave.
suas angústias. É-lhe, também, dito que terá uma hora Quando o paciente está capaz de lidar com a sua
só sua que não será ocupada por mais ninguém e que dor e de a pensar, é chegado o momento da alta
será detentora de material só seu, isto porque a crian- clínica, altura em que surge uma “dor” distinta, advin-
ça que temos perante nós é única e as suas necessi- da do sofrimento causado pela constatação que se
dades não são as dos outros. torna necessária a separação do técnico.
O nosso trabalho cinge-se à criança e, por isso, Talvez por isso, o Miguel, nome fictício, dissesse,
também lhe é referido aos pais que aquilo que se numa sessão em que trabalhávamos a sua alta, “Pare-
passa no seu espaço não poderá ser comentado por ce que engoli a gripe”.
nós cá fora, nem mesmo com os pais, mas que se ela
o pretender o poderá fazer, nós é que não.
Será que os pais vão ser marginalizados deste Bibliografia
processo? Claro que não, aos pais é-lhes oferecido um Ajuriaguerra e Marcelli. Manual de Psicopatologia Infantil. Porto
outro espaço, com um outro técnico, onde poderão Alegre: Artes Médicas 1991.
expôr as suas angústias, quer em relação ao filho, Arfouilloux JC. A entrevista com a criança. Rio de Janeiro:
quer a eles próprios, dado que neste processo tam- Zahar Editores 1976.
Boubli M. Psicopatologia da criança. Lisboa: Climepsi 2001.
bém os pais se encontram em sofrimento. Como enti- Cabral MFS. Contribuições da psicanálise para a psicologia e
dades de maior referência para os filhos, têm que ser
teoria do conhecimento. Comunicação apresentada no VII
incluídos no tratamento desde o primeiro momento, e Colóquio da SPP, Coimbra 1991 – A psicanálise perante a
são eles que vêm procurar ajuda, até ser dada alta. História e a Filosofia da Ciência.
São figuras importantes para os filhos, os quais sentem Coelho CM. O meu cobertor está mais pequeno ou sou eu que
o apoio e investimento dos pais ao mesmo tempo que estou a cresce. Comunicação apresentada nas III Jorna-
estes têm as suas partes mais infantis serenadas das do ISCS. Porto: Norte 2001 – A criança do Normal ao
Patológico.
porque também eles são ouvidos e tidos em conta. Corman L. Examen psicológico del niño. Barcelona: Herder
A presença das figuras parentais reveste-se de gran- 1985.
de importância também porque, depois de uma fase Dias CA. Freud para além de Freud. Lisboa: Fim de Século
inicial da terapia em que se trabalha a confiança no 2000.
técnico, a criança começa a trazer o seu quotidiano Gilliéron E. A primeira entrevista em psicoterapia. Lisboa: Cli-
para as sessões e juntamente, as questões causado- mepsi 2001.
ras de sofrimento. A dor torna-se muito mais presente, Joseph B. Sobre o experienciar a dor psíquica. Revista de
Psicanálise 1988.
porque é pensada, envolvida num processo de cresci- Malpique C. Pais/Filhos em consulta psicoterapêutica. Porto:
mento. Nesta altura, as partes mais primitivas e doen- Afrontamento 1999.
tes da criança procurarão boicotar o processo tera- Milheiro J. Sexualidade e Psicossomática. Lisboa: Fim de Sécu-
pêutico, e esta, numa atitude de fuga à dor, poderá lo 2000.
dizer que quer abandonar o tratamento. Para além de Ocampo MLS, et al. O processo de psicodiagnóstico e as
técnicas projectivas. São Paulo: Martins Fontes 1995.
um apelo nosso às suas partes mais maduras, é Rappaport CR. Diagnóstico Psicológico: prática clínica. São
também necessário explicar isto aos pais e conseguir
Paulo: EPU 1984.
uma aliança com as suas partes mais adultas para que Sá E. Más maneiras de sermos bons pais. Lisboa: Fim de DOR
não condescendam ao pedido dos filhos. Século 1995.
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