Page 8 Volume 11, Número 1, 2003
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L.M. Cunha Batalha: Os enfermeiros e a dor na criança
realidade demonstrava que esta continuava a ser do o enfermeiro como um meio de ajuda pela parti-
negligenciada. lha e vivência da dor .
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Sabe-se que os conhecimentos são requisitos fun- Compete aos professores, numa primeira instân-
damentais para uma competente prática profissional cia, a responsabilidade de desenvolverem nos pro-
cuidativa 19,20 . Numerosos artigos têm demonstrado fissionais de saúde competências tecnicocientíficas
que o eficiente controlo da dor depende da acção e relacionais que permitam reformular mitos, cren-
do enfermeiro que domina as intervenções farmaco- ças e saberes em que nos apoiamos para cuidar de
lógicas e não farmacológicas da dor 7,21 . Mas, como crianças que sofrem com dor.
se explica que apesar de algumas investigações re- Pretendemos com este estudo encontrar a resposta
centes indicarem um aumento dos conhecimentos para a questão: que saberes e práticas de cuida-
dos profissionais de saúde sobre a dor, esta conti- dos perante a dor na criança são adoptadas
nue a ser subestimada? 10,15 . pelos enfermeiros que trabalham em serviços
Os comportamentos são influenciados não apenas pediátricos de três hospitais da região cen-
pela informação de que dispomos, mas também pelos tro do País? Como questões secundárias ambicio-
nossos valores, crenças, saberes e práticas e pelos di- namos saber qual a relação entre a autoavali-
ferentes contextos de vida em que nos situamos . ação dos conhecimentos sobre a dor em
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Como tal, acreditamos ser necessário desenvolver nos pediatria e algumas variáveis sociodemográ-
enfermeiros um saber-saber, saber-fazer e o saber-ser ficas com os saberes e práticas de cuidados
indispensável à adopção de saberes e práticas de cui- dos enfermeiros perante a dor na criança.
dados informadas, conscientes e autónomas. Esta pesquisa de carácter descritivo 27-29 vai-nos
Desconhecemos, entre nós, estudos que caracteri- descrever uma realidade pouco conhecida entre
zem os saberes e práticas de cuidados dos enfermei- nós, dando-nos informações úteis sobre a situação
ros que trabalham em serviços pediátricos. A sua des- presente, contribuindo o conhecimento adquirido
montagem só é possível se soubermos quais os para, se necessário, corrigir saberes e práticas dos
saberes e práticas de cuidados dos enfer- enfermeiros, para, em última instância, melhorarmos
meiros pediátricos, perante a dor na criança. a qualidade de vida das criânças.
Vários estudos 8,19 demonstram que os enfermeiros São objectivos deste estudo:
referem falta de conhecimentos básicos sobre a dor. • Contribuir para a construção de uma escala de
A dor é “o assunto sobre o qual menos se ensina, o saberes e práticas de cuidados perante a dor na
menos compreendido e o mais negligenciado de criança.
toda a medicina actual” . Em Portugal não é conhe- •Analisar os saberes e práticas de cuidados dos
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cido com rigor qual o conhecimento dos enfermeiros enfermeiros.
nesta área. Sabemos que começam a desenvolver- •Relacionar variáveis sociodemográficas e auto-
se os primeiros esforços nesse sentido. Por isso, avaliação dos conhecimentos com os seus sa-
pretendemos com este estudo contribuir para o co- beres e práticas de cuidados.
nhecimento da autoavaliação que os enfer- Estruturalmente, este trabalho encontra-se dividi-
meiros pediátricos fazem dos seus conhe- do em duas partes. Na primeira faz-se o enquadra-
cimentos em relação à dor na criança. mento teórico, estando a revisão bibliográfica dividi-
Rever os nossos conhecimentos sobre a dor e re- da em dois capítulos: a experiência dolorosa na
flectir a prática na busca de uma melhor compreensão criança e expressão do cuidado à criança com dor
dos saberes e práticas que tomamos diariamente e sua família. A segunda parte refere-se à investiga-
quando cuidamos da criança com dor e sua família é ção de campo e encontra-se dividida em 4 capítulos:
um dever ético e moral que se impõe nos nossos dias. metodologia, apresentação e análise dos resultados,
A dor é “abordada por nós, muitas vezes, segun- discussão e conclusões.
do uma perspectiva biológica, mas é importante que Finaliza-se com a apresentação das referências bibli-
nos habituemos a considerar outras dimensões liga- ográficas dos autores consultados, incluindo-se em ane-
das às manifestações dolorosas” . Devemos ver a xo os instrumentos utilizados na colheita dos dados.
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pessoa que sofre de dor como um todo (componen-
te física, psicossocial e espiritual), pois esta tem uma PARTE I – FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
dupla natureza, o “cruzamento do biológico com o Capítulo I – A experiência dolorosa na criança
psicológico e sociocultural” .
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Assim, a prática dos cuidados deve situar-se para Ao longo deste capítulo vai-se fazendo a desmon-
além do modelo biomédico, considerando não ape- tagem de mitos, crenças e saberes acerca da expe-
nas o aspecto sensorial da dor, mas a dor como uma riência dolorosa na criança.
experiência que afecta a pessoa no seu todo. Antes São abordados o conceito de dor e principais carac-
de qualquer planeamento de intervenção de enferma- terísticas que a diferenciam do sofrimento. Descreve-
gem é necessário ter presente as particularidades da se o sistema somatossensorial desde os receptores
pessoa, valores, crenças, significação, formas de ex- periféricos até às vias de transmissão que veiculam os
pressão e gestão da dor, expectativas, etc. 4,25 . influxos nervosos às diferentes partes do cérebro.
O cuidar da criança com dor e sua família passa Relatam-se de forma resumida várias teorias de-
pela necessidade de uma compreensão holística da senvolvidas ao longo dos tempos para compreender DOR
pessoa humana, considerada como um sistema di- e explicar o fenómeno dor, com destaque para a te-
nâmico, com potencial de desenvolvimento, surgin- oria do portão. 7
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