Page 9 Volume 11, Número 1, 2003
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Dor (2003) 11
Apresentam-se os factores que interferem na expe- Dor e sofrimento são experiências individuais e sub-
riência dolorosa da criança e descrevem-se as respos- jectivas que coexistem em estreita relação. Distinguir um
tas da criança à dor de acordo com o seu estádio de do outro é como distinguir alegria de felicidade, dois ter-
desenvolvimento, identificando os vários instrumentos mos abstractos complexos que dizem respeito a muitas
utilizados para medir e avaliar a dor pediátrica. respostas diferentes específicas de cada pessoa 31,38 .
Porque a dor interfere no bem-estar, na relação com
1. O significado da dor/sofrimento os outros e com o mundo, ela diminui a qualidade de
O entendimento da dor ao longo dos tempos tem vida de quem a experimenta, causando também sofri-
reflectido o domínio sucessivo de várias orientações mento interior pela perda de dimensões da sua vida.
filosóficas . Aristóteles considerava a dor como uma Este sofrimento potenciado pela memorização de ou-
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emoção e não como um fenómeno físico. Na Idade tras perdas já vivenciadas e pelo cariz de punição que
Média, a dor associava-se ao pensamento religioso, a própria dor carrega na civilização ocidental, influen-
sendo aceite como uma punição devida a pecados co- cia de forma determinante a vivência da dor.
metidos. O Iluminismo veio glorificar as virtudes da ra- A dor como causa e consequência de sofrimento
cionalidade, tendo encontrado em Descartes o mentor vai para além da sua função biológica, integra a in-
intelectual de uma divisão clássica entre corpo e espí- fluência de factores psicológicos, sociais e cultu-
rito que influenciou o desenvolvimento da ciência e da rais 6,30 . Enquanto experiência humana é vivenciada
medicina dominada por uma visão mecanicista do cor- por cada um de nós de forma particular; ela é uma
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po . A dor era entendida como um fenómeno físico a experiência pessoal e subjectiva que influencia a
ser eliminado através de técnicas mecânicas . Esta nossa maneira de viver . Quer a pessoa que sofre de
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concepção rejeita a comparticipação do homem na dor, quer aquela que dele cuida, estão imbuídos de
construção da sua dor, ou seja, a sua dimensão afecti- concepções (mitos, crenças, medos, preconceitos,
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va, entendendo-a como um facto puramente sensorial . valores religiosos e culturais) que orientam os seus
Actualmente, sabemos que a dor é um fenómeno saberes e práticas perante a pessoa com dor .
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multidimensional, que tem uma componente fisioló- A forma como conceptualizamos a dor influencia
gica ou neuronal, mas também uma dimensão psi- não só a nossa atitude para com a nossa dor, mas
cossocial, espiritual e cultural que percepcionamos também a forma como cuidamos dos que dela so-
como presentes ou subjacentes nas descrições das frem . Os que definem a dor unicamente como uma
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experiências de dor, nos estudos feitos e na nossa sensação tendem a assumir uma postura fisiológica,
própria vivência . Assim, para cada pessoa a dor com tendência para se preocuparem com os limiares
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tem um significado próprio cunhado pela particula- da dor e níveis de tolerância, com estímulos e respos-
ridade e unicidade do seu ser. tas, com causas e efeitos. Os que se focalizam na na-
Segundo a Associação Internacional para o Estudo tureza experiencial da dor preocupam-se igualmente
da Dor esta é “uma experiência emocional e sensorial, com os parâmetros psicossociais da dor e compreen-
geralmente desagradável, associada a lesão tecidual dem que um qualquer factor, tal como experiências
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real ou potencial ou descrita em termos desta lesão” . passadas, estado de espírito presente e seu significa-
Esta definição encerra dois conceitos: do da dor, influenciará a experiência de dor 35,39 .
• a dor como experiência individual e subjectiva; Num quadro de formação clássica os enfermeiros
• e a dor com dois componentes indissociáveis: um aprendiam a dor: como sintoma cuja causa era geral-
neurofisiológico e sensorial e outro emocional ba- mente fisiológica, se a causa não era identificada, en-
seado no estado afectivo, experiências passadas, tão a dor não era real; que bastava olhar para o doente
estádio de desenvolvimento e inúmeros outros para saber se tinha ou não dores; e que o importante
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factores de ordem pessoal, cultural e espiritual . no tratamento era diminuir a expressão da dor .
As investigações têm demonstrado a existência Hoje, reconhece-se a dor como um fenómeno
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de uma forte associação entre dor e emoções: dor multidimensional sensorial e afectivo , como “uma
aguda e ansiedade e dor crónica com ansiedade, caixa de ressonância de significado pessoal e soci-
depressão e raiva . É importante estarmos consci- al” . Ao longo dos tempos tem sido encarada como
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entes que no fenómeno dor estão implicadas todas castigo, forma de purificação por pecados cometi-
as dimensões da pessoa que a experiencia em todo dos, como aviso útil, forma de solicitar ajuda e com-
o seu ser. Neste sentido, a dor é “tudo aquilo que a paixão ou mesmo forma de manipular os outros 41,48 .
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pessoa que a experimenta diz que é, existindo sem- De acordo com Kodiath , sendo a pessoa um todo,
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pre que a pessoa refere existir” . indivisível, só um conceito de dor global pode servir
Importa esclarecer que, segundo Fordyce e Ste- de guia à apreensão deste fenómeno complexo que
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ger (1979, citado por Gameiro) , a dor como sensa- é a dor enquanto experiência humana. Deve ser en-
ção activa os centros nervosos de comando geran- carada, não como uma manifestação fisiológica,
do sofrimento. Inicialmente, o sofrimento é uma mas como um processo multiforme que evolui des-
leitura psicoafectiva da dor física que evolui para um de o nascimento até à morte. Tal como dizia Leriche
estado psicoafectivo real, dependente da memoriza- em 1879, a dor “é o resultado de um conflito entre
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ção da dor física . Ele pode ser intenso sem existir um estímulo e o indivíduo na sua globalidade” .
dor (apenas a recordação de algo desagradável), Neste sentido a dor deve ser entendida como “tudo
DOR como também é possível que ocorra dor sem sofri- o que a experiência pessoal diz que é e ocorre onde o
doente diz que ocorre” . Ou seja, “é uma experiência
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mento, sobretudo se a dor não é associada a uma
8 situação de ameaça para a pessoa . única, individual, determinada pelas experiências pes-
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