Page 12 Volume 11, Número 1, 2003
P. 12
L.M. Cunha Batalha: Os enfermeiros e a dor na criança
A teoria do controlo da porta, proposta em 1965 simples e veiculada em linha recta até um centro de
por Melzack e Wall, propicia actualmente a explica- dor, noção que esquecia a dimensão afectiva e cogni-
ção mais abrangente do fenómeno dor 40,48,49 . tiva da experiência dolorosa (Melzack e Wall, 1987).
A sua finalidade era integrar dentro de um principio Esta teoria explica, igualmente, como a memória de
compreensivo o alto grau de especialização fisioló- experiências passadas, atenção e emoção podem ter
gica das unidades receptor-fibra e das vias de con- influência na percepção da dor e reacção consecutiva,
dução do sistema nervoso; o papel da organização actuando no mecanismo do portão . Em cada pessoa,
45
espacial e temporal da transmissão da informação; ao ter uma faixa única de identidade anatómica, fisi-
a influência dos processos psicológicos da percep- ológica, social e psicológica, a dor só pode ser uma
ção da dor e sua respectiva reacção, e os fenómenos experiência subjectiva . Esta natureza subjectiva da
50
clínicos de somação temporoespacial, de propaga- percepção da dor é explicada pela teoria do portão.
ção e de persistência dolorosas depois da cura . A forma, tamanho do corpo e a distribuição dos
45
Este modelo explica as influências na modulação da nociceptores diferem de pessoa para pessoa, o que
percepção da dor e as relações, variáveis, entre estí- pode explicar as diferenças em cada um de nós.
mulo nociceptivo e percepção da dor. Basicamente, a Possuímos capacidades próprias e únicas de produ-
teoria de controlo da porta consiste num mecanismo zir neurotransmissores de excitação, inibição e neu-
nas sinapses entre neurónios aferentes e neurónios do romoduladores endógenos dependendo de factores
feixe ascendente espinocerebral. A estas sinapses genéticos ou hereditários e de factores ambientais .
50
da substância gelatinosa dá-se o nome de porta 45,50 . O controlo mental, feito através de factores ambi-
Estão presentes na ponta dorsal do corpo cinzento entais/sociais, conduze à abertura ou fecho da por-
da espinhal medula e dentro das áreas cerebrais ta, pela influência que exerce nos processos fisioló-
como tálamo, formação reticular e sistema límbico. gicos . Níveis altos de ansiedade levam a uma
50
A teoria do controlo portal sugere que este mecanis- diminuição na produção de opiáceos endógenos de
mo na substância gelatinosa (porta) funciona deixando que resulta a abertura da porta (controlo portal des-
ou não passar o fluxo de impulsos nervosos desde cendente). Este facto relevante resulta, para os téc-
as fibras aferentes primárias até ao sistema nervoso nicos de saúde, que uma avaliação mais objectiva
central. O grau segundo o qual a porta abre ou fecha da dor deverá ser feita idealmente numa situação em
é terminado pelo equilíbrio da actividade das vias que a criança não esteja ansiosa, pois isso influen-
aferentes primárias (fibras Aβ e Aδ, C) e pelas influ- cia a percepção da dor.
ências descendentes do cérebro . A porta abre pela Importa referir, a propósito, que as diferenças cul-
40
acção de neurotransmissores de excitação (subs- turais na percepção da dor afectam a produção fisi-
tância P) e fecha pela libertação de neurotransmis- ológica de neuromoduladores endógenos, o que ex-
sores de inibição e neuromoduladores endógenos . plica as diferenças comportamentais na resposta à
50
As fibras Aδ e C são os nociceptores responsáveis dor. Daqui resulta que o alívio da dor deve ser feito
pela libertação da substância P, enquanto as fibras de uma forma personalizada .
50
Aβ são os mecanorreceptores que libertam substân- Acresce que, para além da dor poder ser modula-
cias neurotransmissoras de inibição. Por esta razão, da pela educação (sociedade-cultura), também o
se explica a acção da massagem ou a estimulação pode pela selecção dos estímulos, pois dois estímu-
nervosa transcutânea no alívio da dor. Estas técnicas los não podem ser percepcionados simultaneamente
levam à estimulação dos mecanorreceptores que ao pelo cérebro – princípio da inundação sensorial . Eis
38
libertarem neurotransmissores de inibição que fe- a razão, porque uma actividade lúdica, a música, ou
cham o portão e impedem a passagem dos impulsos a conversa pode aliviar a dor, e a privação sensorial
nervosos ao cérebro. Segundo McVicar e Clancy , (noite, escuridão, silêncio, isolamento) pode aumen-
50
os neurotransmissores de inibição actuam diminuindo tar a percepção da dor.
a produção de substância P (inibição pré-sináptica) Resumidamente, diríamos que a teoria do contro-
evitando a activação do receptor da substância P na lo do portão propõe a dor como um fenómeno neu-
membrana pós-sináptica (inibição pós-sináptica). rofisiológico, baseado na transmissão de um estímu-
Esta teoria propõe igualmente um mecanismo de con- lo que produz uma sensação dolorosa, fazendo
trolo portal via descendente desde os centros corticais referência a processos de modulação sociopsicoló-
superiores . Mesmo numa situação em que o impulso gicos (emoções, pensamentos, experiências passa-
50
das fibras Aδ e C sejam dominantes (o que faz abrir a das, etc.) que influenciam a percepção da dor e a
porta e percepcionar a dor) a porta pode fechar-se por resposta comportamental da pessoa, à mesma.
acção dos centros superiores (núcleos trigémeo, vesti- De acordo com esta teoria, existe um mecanismo
bular, hipotálamo e córtex cerebral) através das vias ao nível das sinapses entre os neurónios aferentes e
nervosas dorsolaterais de controlo descendente. Isto neurónios do trato ascendente espinocerebral (me-
ocorre mediante a libertação de opiáceos endógenos canismo do portão) que se situa na substância gela-
dos quais se conhecem três grupos principais: endorfi- tinosa da espinhal medula e dentro de áreas cere-
nas, encefalinas e dimorfinas, que actuam inibindo a brais como o tálamo, formação reticular, sistema
produção da substância P . Compreende-se, assim, o límbico, que abre ou fecha o portão, permitindo ou
40
efeito terapêutico no alívio da dor da diversão, distrac- impedindo a transmissão de impulsos dolorosos ao
ção, aconselhamento ou mesmo do efeito placebo. cérebro, através de um equilíbrio de actividade entre DOR
Uma das primeiras consequências da teoria do por- as fibras aferentes primárias e pelo controlo descen-
tão foi abolir a ideia de que a dor era uma sensação dente que partem dos centros superiores do cérebro. 11