Page 30 Volume 12, Número 4, 2004
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H. Cardoso-Cruz, et al.: Efeito do Antagonista do Receptor de Glicina (Estricnina)...
Introdução pelos sistemas de receptores espinhais glici-
nérgicos e GABAérgicos é uma chave impor-
Estudos farmacológicos têm sugerido que a tante para explicar como a diminuição na efi-
transmissão da informação aferente na medula ciência dos circuitos espinhais inibitórios
espinhal está sujeita a modulação por sistemas pode contribuir para doenças associadas ao
de receptores locais. A glicina e o GABA são processamento sensorial da dor (Sivitotti e
dois aminoácidos neurotransmissores inibitórios Woolf, 1994).
envolvidos nesse processo, estando presentes O presente trabalho teve como objectivo a aná-
na medula espinhal em altas concentrações (Pol lise de alterações no circuito populacional espi-
e Gorcs, 1988; Todd e Sullivan, 1990). Recen- nhal induzidas pela administração de estricnina.
tes estudos em rato para identificação da lo- Para esse efeito foram registados pequenos gru-
calização dos receptores da glicina e GABA pos de neurónios espinhais vizinhos antes e
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através da quantificação da expressão da depois da aplicação de estricnina, a fim de
proteína fos a nível laminar, induzida pela caracterizar os efeitos na resposta nociceptiva
aplicação de antagonistas selectivos destes e no comportamento dos neurónios à estimu-
receptores (estricnina e picrotoxina, respecti- lação táctil.
vamente), demonstraram que os receptores
da glicina se encontram concentrados nas lâ-
minas III-VI, enquanto que os receptores GABA Material e métodos
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se encontram distribuídos pelas lâminas I-VI Neste estudo foram utilizados 14 ratos machos
(Cronin, et al., 2004). adultos Sprague-Dawley (250-400 g). Os animais
A activação directa dos receptores de glicina foram anestesiados com uretano (1,5 mg/kg, i.p.)
e GABA na medula espinhal resulta numa forte e em seguida colocados no aparelho de estere-
corrente inibitória da actividade espontânea e otaxia para realização de uma laminectomia en-
de resposta a estímulos a nível de neurónios tre as vértebras T11 e L2. A vértebra mais ros-
secundários (Lin, et al., 1994). O bloqueamento tral e a mais caudal foram fixas e a dura mater
dos receptores de glicina e GABA na medula foi removida na área exposta para promover o
espinhal mediante a utilização de antagonistas registo celular. A medula espinhal foi coberta
selectivos resulta num aumento da actividade de com óleo mineral para evitar desidratação su-
fundo, das respostas à estimulação periférica perficial. Após a indução da anestesia a cada
(Yaksh, 1989; Lin, et al., 1994; Peng, et al., 1996; animal foi administrada uma dose de solução
Sotgiu e Biella, 2002) e em alterações a nível do de sulfato de atropina (0,02 mg/kg, s.c.) e 1
campo receptivo dos neurónios (McGaraunghty ml/h de soro (Sac. 2% p/v em NaCl 0,9% p/v,
e Henry, 1998). Estudos em animais não anes- s.c.) durante a experiência. O nível de anestesia
tesiados nos quais foram aplicadas doses sub- e paralisia da musculatura foi testado regular-
convulsivas de estricnina (antagonista do re- mente através da análise do reflexo palpebral,
ceptor da glicina) e bicuculina (antagonista do do recolher das patas e dos reflexos à com-
receptor de GABA ) revelaram uma marcada hi- pressão da cauda. A temperatura corporal foi
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peractividade espinhal para estímulos inócuos monitorizada através de um termómetro rectal e
o
(Bagust, et al., 1981; Beitz e Larson, 1985). Es- mantida a 37 C por feedback com uma manta
tes dados sugerem que a libertação de glicina homeotérmica de aquecimento.
e GABA na medula espinhal pode modular fun- No registo da actividade extracelular foram
ções sensoriais por activação tónica desses re- utilizadas matrizes contendo oito eléctrodos
ceptores (Lin, et al., 1994, 1996). O antagonista de tungsténio (FHC, Bowdoinham ME, USA)
do receptor espinhal da glicina, a estricnina, pro- com orientação rostrocaudal, espaçados entre si
duz um rápido e reversível estado de alodinia no 240 µm com uma impedância variando entre
rato (Sotgiu e Biella, 2002). Esta hipersensibili- 4-7 MΩ. Os neurónios que respondiam à esti-
dade consiste na redução da intensidade do mulação da pata posterior contralateral foram
estímulo que é necessário aplicar para desen- registados entre as lâminas II e V da medula
volver comportamentos associados a dor que, espinhal. A estimulação aplicada consistiu em
geralmente, correspondem a um aumento da ex- períodos de 60 s de toque suave aplicado por
citabilidade dos neurónios espinhais (sensitiza- um servo robótico (Robix, Advanced Design Inc,
ção central) (Coderre e Melzack,1992; Sivilotti Arizona, USA) a uma frequência de 0,5 Hz e a
e Woolf, 1994; Lin, et al., 1994, 1996; Peng, estimulação dolorosa em períodos de 30 s de
et al., 1996; Sherman, et al., 1997). Há evi- pressão contínua aplicada por uma pinça cirúr-
dências que sugerem que transmissores ex- gica. O campo receptivo das células foi mape-
citatórios ou neuromoduladores libertados ado por estimulação mecânica e as células
pelos aferentes primários nociceptivos podem foram classificadas de acordo com as suas res-
induzir sensitização central associada a um postas aos estímulos: neurónios de escala di-
comportamento alodínico (Sivitotti e Woolf, nâmica larga (WDR, wide-dynamic-range), neu-
1994). Todavia, a perda da inibição pode tam- rónios de limiar baixo (LT, low-threshold), DOR
bém resultar num aumento da excitabilidade. neurónios nociceptivos específicos (NS, noci-
A regulação do balanço excitatório e inibitório ceptive-specific) e neurónios sem resposta a 29
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