Page 7 Volume 17 - N.1 - 2009
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é numa perspectiva biopsicossocial que o deve- utilização, só melhorado este ano (2008) com a
mos avaliar, o que implica considerar sempre as medida legislativa que lhes atribui uma com-
vertentes fisiológicas, afectivas e comportamen- participação de 95%, embora algumas admi-
tais da dor. O que importa é o doente e a sua nistrações hospitalares, faça-se-lhes justiça, já
envolvência, com toda a carga emocional que a as distribuíam gratuitamente.
doença oncológica acarreta não só ao doente Mesmo assim, alguma opiofobia ainda existe,
como aos seus familiares, e que vai muito para que é preciso a todo o custo combater, conside-
além da doença propriamente dita: a angústia e rando-se hoje que a prescrição adequada de
a depressão, a perda de estatuto, muitas ve- opióides e o seu consumo racionalizado consti-
zes a quebra da auto-imagem, quase sempre o tuiu ainda o melhor índice de um correcto trata-
medo da dor. mento do doente oncológico.
Tratar a dor, particularmente a dor oncológica, Também o conceito de Dor Total, proposto
sempre foi um desafio, embora se possa afirmar por Dame Cecily Saunders, fundadora do St.
que uma terapêutica assente em bases racionais Christopher´s Hospice, Londres, em 1967 e a
e científicas apenas se tenha iniciado há pouco grande impulsionadora dos hospícios ingleses,
mais de 30 anos. chamando a atenção para a multiplicidade de
Vinha-se de um período em que imperou a factores que estão na origem e manutenção dos
tradição judaico-cristã com todo o seu cotejo de quadros álgicos, veio trazer, como consequên-
crenças e mitos. cia, não só uma visão holística do problema,
Um deles era precisamente o conceito da ine- como o impulso e desenvolvimento da Medicina
vitabilidade da dor como forma de expiação ou Paliativa e Cuidados Paliativos, envolvendo não
redenção, e a convicção de que certos fárma- só doente, como o apoio às famílias/cuidadores
cos como a morfina só deviam ser utilizados na e a indispensável informação/comunicação.
fase terminal da doença, e mesmo assim com Foi, também, importante neste contexto, o es-
o
toda a parcimónia. tabelecimento da dor como 5. sinal vital. Pro-
O próprio doente e seus familiares e, diga-se, posto nos EUA no início da década de 90 do
muitos profissionais, comungavam desta ideia, século precedente como forma de avaliar a dor,
tornando-se refractários a uma utilização correcta foi alvo, em 2005, de um Despacho Normativo
desta substância que, além do mais, era difícil de da Direcção-Geral da Saúde, que estabelece a
obter e era alvo de uma legislação apertada. obrigatoriedade de, em todos os serviços pres-
Foi preciso desfazer mitos e alterar mentalida- tadores de cuidados de saúde, todos os doentes
des. Para isso, muito contribuiu o esforço desen- serem registados em função da intensidade de
volvido pelas Unidades de Dor; a primeira no dor que eventualmente sintam, através de esca-
IPO de Lisboa em 1978, outras se seguiram nos las próprias, tal como se faz para os outros si-
anos seguintes, bem como o Plano Nacional da nais vitais (temperatura, frequências respiratória
Luta contra a Dor, aprovado por Despacho Minis- e cardíaca e pressão arterial). Esta prática evita
terial de 26 de Março de 2001, procurando es- o «esquecimento» a que muitas vezes a dor é
tabelecer uma rede nacional de Unidades de Dor votada, torna-a mais «visível» e, naturalmente,
que funcionariam não só como centros de re- induz o seu melhor e adequado tratamento.
ferência no estudo e tratamento da dor, mas, Embora de uma forma gradual, objecto de
também, como elementos motivadores de uma uma intensa luta por todos quantos sentiam que
nova mentalidade na abordagem da dor, desmi- o doente, particularmente o oncológico, não po-
tificando conceitos ultrapassados causadores dia mais ser abandonado, a dor, ou melhor, o
de sofrimento inútil. seu alívio, deixou de ser uma inevitabilidade
A investigação, quer básica quer clínica, con- para entrar na esfera dos direitos e deveres, não
duziu à utilização de novos fármacos, introduzi- sendo aceitável que, nos nossos dias, o comba-
ram-se novas tecnologias, criaram-se novas te à dor e ao sofrimento não estejam nas preo-
metodologias. cupações dos profissionais, instituições e polí-
A escada analgésica, proposta em 1986 pela ticas de saúde.
OMS para o doente oncológico, propondo uma Pode ser considerado hoje negligência, com
administração criteriosa de opióides e substân- todas as suas consequências, não tratar ade-
cias adjuvantes, e hoje utilizada em todas as quadamente a dor e o sofrimento quando temos
formas de dor crónica, constituiu, sem dúvida, à nossa disposição meios para o conseguir. E
um passo importante no alívio da dor. esta atitude é tanto mais grave quanto estamos
A escada analgésica visava, fundamentalmente, na presença de pessoas mais fragilizadas, como
introduzir os opióides nos países menos desen- a criança e o velho, os débeis económicos, as
volvidos, onde estas substâncias eram irrelevan- pessoas com dificuldade de comunicação, a do-
tes como medicação, fruto não só de atavismos ença avançada e terminal. E esta responsabili-
culturais e religiosos como na dificuldade na sua dade é de todos e envolve toda a sociedade.
obtenção. Mesmo nalguns países mais desen- Quando se aproximam tempos em que provavel-
DOR volvidos, como o nosso, o preço elevado destas mente iremos ser chamados a pronunciarmo-nos
sobre o «destino» dos nossos concidadãos, é
substâncias, sobretudo as formas sintéticas, tem
6 constituído uma dificuldade acrescida na sua bom que nos indaguemos se fizemos tudo o que