Page 10 Volume 17 - N.1 - 2009
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G. Castanheira: A Dor na Representação do Cinema
E é então que entram em cena os pintores do rosto e das expressões; aproximou-nos da
impressionistas que rompem de vez com as leis subjectividade do nosso olhar individual sobre
vigentes. Pintam em traços largos, sugerem a as coisas e as pessoas. No fundo, aproximou-
figura através de manchas de cor descarnadas, nos de nós próprios.
desorganizam, reinventam. O contorno realista A segunda grande descoberta, decorrente da
do claro-escuro dá lugar à sugestão da forma primeira, foi a montagem paralela. Temos a cena
pelo jogo de cores. O resultado é, para a época, de uma mulher em apuros em sua casa. Corta
chocante. para a cena do marido a regressar do trabalho
Posso aliás partilhar convosco uma crítica à em direcção à casa. Será que ele vai chegar a
primeira exposição de um colectivo de pintores tempo de a socorrer?
impressionistas em Paris, no ano de 1874. O cinema passou a estar perto da existência
Dizia a crítica: «Eles, os impressionistas, pe- real a este ponto: está tudo a acontecer ao mesmo
gam num pedaço de tela, tintas e um pincel, tempo. A montagem paralela resolveu a natureza
besuntam meia dúzia de manchas sobre ela ao simultânea da vida. E a partir destes dispositivos,
acaso, e assinam o nome nessa coisa.» Mas os mas sempre em torno deles, o cinema foi cres-
ânimos acalmaram. Os impressionistas, como cendo e tornando-se mais complexo, até hoje.
Monet ou Renoir, tornaram-se pintores consagra- Ora, um dos grandes desafios em cinema é,
dos e conheceram, em vida, enorme reconheci- precisamente, a representação dos estados de
mento público. alma, entre os quais a dor. Sócrates, ao afirmar
O que só foi possível porque entretanto surgiu que a actividade da alma devia ser representada
outra forma de arte que continuou a assegurar a observando o modo como os sentimentos afec-
representação realista da figura humana: a foto- tam o corpo em acção, enuncia um desafio que
grafia. E da fotografia ao cinema foi um passo. se viria a colocar de forma premente no cinema.
Enquanto a escultura e a pintura se libertavam Muito concretamente, na escrita de um argu-
do dever do realismo, o cinema tornou-se o ve- mento para cinema, por exemplo, não se pode
ículo da representação do humano, da vida hu- escrever: «João caminha angustiado». Nem tão-
mana, em toda a sua complexidade. pouco: «João, num luto profundo, senta-se no
Imagino aliás que se os egípcios tivessem sofá». «Angustiado» e «luto profundo» não são
descoberto o cinema, os túmulos estariam cheios ideias visuais, são antes conceitos visualmente
de longas metragens de gente a andar de lado nulos. E não podemos confiar só na fisionomia
para fazer companhia aos faraós. Até porque em do actor para transportar a emoção. Não é se-
última análise o cinema tem uma função mágica quer justo para o actor que o façamos.
semelhante de alguma forma e na medida em Em cinema, o argumentista e o realizador têm
que «congela» as realidades que filma, o cinema de pensar acções, gestos e comportamentos
também parece desenhado para nos imortalizar. externos que permitam que nós, espectadores,
Ora, cada arte tem de superar obstáculos es- possamos induzir e sentir a paisagem interna da
pecíficos para chegar à representação do huma- personagem.
no, como já vimos no caso da escultura. E aqui voltamos aos nossos já conhecidos
O cinema, como arte eminentemente visual, tam- egípcios. Sendo o cinema uma arte eminente-
bém tem os seus obstáculos concretos. mente visual, a tentação é fazer exactamente o
E aqui peço-vos paciência para darmos outro mesmo que os egípcios faziam: representar de
salto atrás. É um salto mais curto, até ao nasci- perfil, representar a realidade a partir do seu
mento do cinema. Tudo começou no princípio do ângulo mais característico (caricatural), para
século passado, com pequenas cenas documen- que se veja mais.
tais: uma criança a tomar o pequeno-almoço, um Neste cinema lateral, o desespero de uma
comboio a chegar à estação. Mais tarde, o desejo personagem pode ser resolvido pondo a perso-
de registar a vida pediu emprestado ao teatro e à nagem a entrar num carro e a arrancar a grande
literatura a capacidade de contar pequenas histó- velocidade. O chiar das rodas no asfalto ocupa
rias. Os primeiros filmes onde se inscreve um de- o lugar do desespero. Nada mais fácil, nada
sejo de ficção são planos fixos onde tudo se pas- mais lateral.
sa como se de um palco filmado se tratasse. Mas ainda assim esta lateralidade serve al-
David Griffith, um realizador americano, faz gum cinema, a comédia, por exemplo. Mas ser-
duas descobertas importantes, que estão na ve-a apenas na medida em que a caricatura
base do cinema tal como o conhecemos hoje: a serve a comédia. Mas não serve o drama, não
découpage, termo que ficou do francês e que serve a dor.
se pode traduzir por «acto de cortar em boca- Porque a verdade é que a dor, a grande dor,
dos» e que deu origem à montagem. Ou seja, a se apresenta de frente. Apresenta-se de frente,
capacidade de filmar cortando a cena em vários em profundidade e para a ler, para a podermos
segmentos em escalas diferentes e colar estes representar interiormente, somos obrigados a
segmentos a seguir, obtendo o resultado de um perspectivá-la. E nada será, porventura, tão di-
todo pela soma das partes. Todo o cinema é fícil. Na vida como no cinema. DOR
feito assim. Esta técnica libertou a câmara da Muito concretamente, se tomar o meu braço
distância relativamente aos actores; aproximou-nos como uma dor e se eu o apresentar de perfil 9
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