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para vós, quaisquer duas linhas paralelas com literalmente a juventude e desenhando uma per-
alguma coisa redonda na ponta o representam sonagem literalmente traumatizada por essa
minimamente. E posso facilmente ligá-lo ao cor- morte.
po a que pertence com duas curvas, uma as- Não há, quanto a mim, outro filme, outra cena,
cendente outra descendente. que melhor fale da angústia do envelhecimento,
Mas se vo-lo apresentar de frente, em profun- da juventude perdida.
didade, é muito mais difícil representá-lo. E é De seguida, quero mostrar-vos uma cena de
extraordinariamente difícil articulá-lo com o cor- um filme de Clint Eastwood que é, sem dúvida,
po. Onde termina, que linhas o fazem pertencer um dos realizadores mais interessantes da actu-
à identidade que o projecta? A que sujeito per- alidade e, provavelmente, o realizador mais in-
tence esta dor? teligente de Hollywood.
Alguns realizadores tentam resolver este proble- Ao contrário de Cassavetes, que se fosse pin-
ma ficando-se pelos nós dos dedos. Fecham so- tor era um impressionista, Clint Eastwood é um
bre esse pedaço. A dor apresenta-se assim literal- hiper-realista. Que se serve, nesta cena que vos
mente como um nó cego, sem ponto de fuga, vou mostrar, de grandes armas do cinema: a
redenção ou pertença. Algum cinema europeu, composição do plano, a iluminação e a repre-
algum cinema português, tem este hábito. Tam- sentação. Tudo dispositivos que Sócrates ado-
bém não é, do meu ponto de vista, a solução. raria, certamente, ver aplicados.
Existem realizadores capazes de representar A cena que vão ver é tirada de Million Dollar
a frontalidade da dor. Poucos, mas existem. Mas Baby (Sonhos Vencidos, em português). A jovem
também devo dizer que há realizadores que, pugilista discípula de Frankie, a personagem in-
apesar de francamente egípcios, conseguem a terpretada por Eastwood, teve um acidente du-
seu modo fazer filmes geniais, como Hitchcock, rante um combate e ficou totalmente paralisada.
o mais egípcio entre todos, e filmes que apesar Pede a Frankie que termine com a sua vida mas
de laterais tocam e identificam a dor, como Al- Frankie recusa-se. Ela tenta, repetidamente,
modovar. suicidar-se. O que faz com que Frankie acabe
Mas de seguida quero mostrar-vos cenas de por ceder ao seu pedido.
filmes em que a dor é representada de frente. Esta cena é perfeita. Não me atrevo sequer
Vou começar por duas cenas de um filme de comentá-la.
John Cassavetes, Opening Night (Noite de Es- A verdade é que me parece não haver nada
treia, em português). Cassavetes foi um cineas- mais importante para uma espécie tão vulnerá-
ta independente. Realizava em casa, rodeado vel, sobre tantos aspectos, como a nossa, do
de amigos. Era casado com a actriz Gena Ro- que saber olhar a dor de frente. Se comparar-
wlands que entrou em quase todos os seus fil- mos a história do cinema com a história da es-
mes. Bebiam, muito, e improvisavam. Eram feli- cultura, por exemplo, é fácil concluirmos que
zes e infelizes, eram de carne e osso e estes primeiros 100 anos serão um dia vistos
orgulhavam-se disso. Os filmes de Cassavetes como a antiguidade do cinema. E se o cinema
são uma ostentação desbragada da sua huma- ainda não representa uma dimensão humana tão
nidade. básica como a dor, com a exactidão desejada,
Opening Night é protagonizado por Gena Ro- não nos devemos desapontar excessivamente.
wlands, que desempenha o papel de uma actriz Podemo-nos sempre lembrar que o cinema imi-
de teatro, Myrtle Gordon. Esta actriz investiu ta e reproduz a vida.
toda a sua energia nas personagens que repre- E que portanto os realizadores de cinema imi-
sentou, esquecendo-se de viver a sua própria tam o que podem, como podem, uns melhor,
vida. Sente-se a envelhecer e sente que não tem outros pior. Estou convencida de que é na vida
um projecto de vida seu. Vão ver duas cenas real que temos de ser bons realizadores. Bons
distintas, uma é logo no início do filme e outra a médicos, bons terapeutas, bons amigos e aman-
meio. Estão divididas por um fade a negro e tes. Um dia o cinema imitar-nos-á.
estão relacionadas entre si. Para terminar, posso dizer-vos que estou hoje
Para mim, estas cenas são exemplos brilhan- aqui convosco, viva e bem disposta porque hou-
tes de representação do sofrimento. Neste caso ve, há cinco anos atrás, um bom terapeuta que
concreto, o sofrimento da passagem do tempo olhou a minha dor de frente e me soube ajudar
sobre nós, que o realizador dá a ver matando a perspectivá-la.
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