Page 9 Volume 17 - N.1 - 2009
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Dor (2009) 17
Dor (2009) 17
A Dor na Representação do Cinema
Graça Castanheira
O cinema é um artefacto cultural criado por estátuas, de Cléobis e Biton, duas figuras da
culturas específicas que nele se reflectem e que, mitologia grega, que revelam de forma clara o
em retorno, se vêem por ele influenciadas. empenho do escultor em representar de forma
Neste sentido, nenhuma outra arte nos devol- realista os joelhos das suas personagens. O re-
verá tão directamente a nós mesmos mas, quan- sultado não é brilhante, mas revela inequivoca-
do o cinema tenta capturar dimensões humanas mente o esforço que o escultor estava a fazer
tão complexas como a dor, frequentemente falha. para entender a anatomia interna dessa parte do
Sendo a sétima das artes, talvez importe dar um corpo tão complicada que é o joelho.
salto atrás para entender esta falha. Nas pinturas de vasos gregos que chegaram
Comecemos pelo Egipto no ano 2600 a.C. Datam intactos até nós, articulam-se figuras que, ape-
desta altura e desta civilização as primeiras re- sar de ainda não totalmente perspectivadas, já
presentações pictóricas do corpo humano de têm outro tipo de agilidade. É de resto num des-
forma mais extensa e consistente. As pinturas e ses vasos, datado de 500 anos a.C., que pode-
os relevos egípcios tinham como função forne- mos ver o primeiro pé humano desenhado em
cer servos para as almas no outro mundo, eram perspectiva, de frente. Durante mais de 2.000 anos
desenhadas para fazer companhia aos mortos, da sua história, o Homem não se atreveu a fugir à
naquilo que seria a sua vida para além da vida. lateralidade para representar a figura humana e,
A tarefa dos artistas egípcios era representar nomeadamente, os pés.
figuras aptas a prestar serviço, e portanto a fi- Os gregos levaram até às últimas consequên-
gura tinha de ser inscrita com o máximo de am- cias a representação realista do corpo. Chegam-
plitude e de permanência possíveis. nos dessa época estátuas que representam cor-
Por exemplo, se tivessem de representar um pos que parecem vivos. Mas são estátuas de
tanque visto de cima com peixes a nadar, os deuses e semideuses da mitologia grega. E sur-
egípcios representariam os peixes de lado, uma gem, de facto, aos nossos olhos maiores do que
vez que se os representassem vistos de cima a vida.
eles não passariam de um traço ondulado. Um E têm, também eles, uma característica co-
rosto era representado a partir do seu ângulo mum: o grau zero da expressão facial. Porque
mais característico, ou seja de perfil. E o olho, havia na época a convicção profunda de que a
para que se visse melhor, era por sua vez ins- expressão humana desfiguraria o rosto, quebra-
crito de frente nesse perfil. O exemplo mais aca- ria o efeito de beleza e de plenitude tão deseja-
bado da aplicação desta regra dá-se na repre- dos pelos gregos. Considerava-se então que a
sentação dos pés que, para além de pintados expressão das emoções devia ser dada através
sempre de lado, eram desenhados a partir do da postura do corpo.
contorno do dedo grande do pé. Portanto, am- Era o próprio Sócrates, que também se dedi-
bos os pés eram vistos do lado de dentro e a cou à escultura, quem afirmava que a actividade
figura humana, assim representada, parece ter da alma devia ser representada, palavras suas:
dois pés esquerdos ou dois pés direitos, conso- «observando minuciosamente o modo como os
ante a direcção do corpo. sentimentos afectam o corpo em acção». Se
Alguns historiadores de arte, sugerem que bem que realistas, estas estátuas ainda não re-
esta forma de representar o corpo está intima- presentavam seres humanos reais. Mas claro que
mente ligada à finalidade mágica da represen- também este problema foi ultrapassado e a escul-
tação pictórica. Como poderia um homem com tura evoluiu para a representação fisionómica
um braço perspectivado ou um pé fragilizado aproximando-se do conceito moderno de retrato.
por dedos mindinhos, levar ou receber eficaz- Um dos primeiros homens retratados foi Ale-
mente as oferendas do defunto que servia? xandre, o Grande, que, com o seu périplo pelo
Dois milénios mais tarde, os gregos vão bus- Oriente, conquistou o título de semideus e se fez
car inspiração a estas figuras. Mas rapidamente representar num busto de pedra com rugas na
ultrapassam as velhas regras de representação testa, até aí inexistentes E desde esse tempo
e começam a explorar a figura humana em toda que nunca mais a escultura e a pintura cessa-
a sua complexidade. Há o exemplo de duas ram de retratar o corpo e a realidade circundante
com todo o realismo possível.
DOR está dominada, e estão aparentemente esgota-
Dezanove séculos mais tarde, a figura humana
8 E-mail: gcastanheira@gmail.com das as maneiras e os métodos de a representar.