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mesma forma que a dor se apodera do corpo. vice-versa poderá estar mais ou menos activa,
O doente sente-se diminuído, insignificante, atin- sendo seguramente misteriosa e complexa.
gido na sua auto-estima, preocupado com as Na procura de uma melhor compreensão da
incertezas do futuro, com medo da sua incapa- relação corpo-mente, pensei no parto e na rela-
cidade. ção mãe-bebé como metáforas.
A dor não fica circunscrita ao corpo, ela inva- Da escuta de reflexões de um médico aneste-
de o doente na sua existência para lá desta sista aprendi que no parto, a dor que não é
condição. patológica, ao contrário da dor crónica, é medi-
Enquanto a dor aguda, tal como a ansiedade da pela quantidade de analgésicos que a mãe
sinal, se constitui como uma ameaça à integridade toma. A sensação de segurança com que a mãe
ou um sinal de alerta, e é possível o seu contro- vivencia o parto a ajuda a suportar a dor, con-
le pela eliminação do agente causal, a dor cró- sumindo por isso menos analgésicos, e que em
nica, perde aparentemente esta função de alerta mães com maior grau de ansiedade ocorre o
e de preservação tão útil à evolução da espécie. oposto e os partos são mais difíceis, geralmente
A dor, como o prazer e o amor, é assim funda- com mais dor e maior consumo de analgésicos.
mental à humanidade. Não a sentir deixa-nos A sensação de segurança ou ansiedade, para
indefesos, senti-la obriga-nos ao desamparo, além de estar relacionada com aspectos da pró-
muitas vezes mascarado pela capa de uma om- pria personalidade das parturientes, é influencia-
nipotência que intuímos frágil e defensiva. da pela forma como a equipa que acompanha o
Desta forma, a dor crónica não pode ser en- parto as coloca como centro de toda a acção,
tendida só como uma função de defesa e pro- atende às suas necessidades e dificuldades, é ca-
tecção, ela constitui-se como doença em si e paz de criar um espaço de intimidade, isto é,
necessita de tratamento. Este deve ser multidis- como as mães são o sujeito do parto e não su-
ciplinar e com um maior envolvimento de profis- jeitadas ao parto.
sionais de diversas áreas da saúde, enfatizando Estes factores influenciam a sensação subjec-
a necessidade de uma abordagem biopsicosso- tiva de satisfação vivenciada no parto. Esta sa-
cial na compreensão dos indivíduos com dor cró- tisfação pode culminar, é certo que pela acção
nica. Os programas de reabilitação devem ter da ocitocina, na ocorrência de orgasmos, igno-
como objectivo o aumento das actividades ge- rando estas parturientes, a meu ver bem, o Prin-
rais e das funções, pois apesar da dor, é funda- cípio do Velho Testamento de que a mulher de-
mental manter as actividades diárias e a capa- veria ter dor ao «dar à luz» os seus filhos.
cidade de as realizar mais eficientemente, sob A indiferenciação biológica com que nasce o
pena de uma maior exclusão de uma sociedade bebé é uma enorme vantagem, pois permite
que não permite a falha, uma sociedade com uma capacidade adaptativa excepcional. No en-
pouco lugar para a diferença e que exige a efi- tanto, não podemos ignorar que essa mesma
cácia e a constante superação a qualquer custo. indiferenciação nos torna prematuros e depen-
Nesse sentido, o planeamento das actividades dentes desde o primeiro momento. Se pensar-
em casa ou no trabalho com a possibilidade de mos nas outras espécies, quase todas as crias
pausas é benéfico, bem como a reformulação nascem com mais capacidades que os bebés
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dos gestos ou dos movimentos poderá ser po- humanos .
sitivamente adaptativa. A partilha de conheci- É no nascimento que nos confrontamos com
mento com o doente e as orientações quanto à a dor primordial, o desamparo.
forma como se deve lidar com as dores muscu- Assim, realçamos também a importância do meio
loesqueléticas em casa e quanto aos autocuida- envolvente e dos cuidados prestados ao bebé.
dos durante as reagudizações da dor, como o O meio, enquanto fornecedor de cuidados e de
uso de automassagem e exercícios físicos pare- acções específicas face a esta condição de de-
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ce também ser útil . samparo e dependência inicial, vai ou não pro-
No entanto, estas úteis intervenções externas mover experiências de satisfação em função da
não excluem a necessidade de compreensão qualidade dos cuidados prestados.
interna que a dor coloca aos doentes e aos O bebé, na exploração do mundo e na procu-
profissionais de saúde. ra do Outro, explora inicialmente o seu próprio
A dor enquista-se como um estranho no cor- corpo. A ligação ao corpo faz-se através do que
po, tornando o próprio corpo estranho a si mesmo, se designou por zonas erógenas, fontes de pra-
contribuindo assim para fragmentação da iden- zer. Para além do corpo biológico consideremos
tidade. A dor rompe a comunicação corpo-mente também a noção de corpo erógeno, incompleto
e altera a relação do corpo com o sujeito, deste e desejante do Outro .
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consigo próprio e com o mundo, contribuindo para É através das sensações e da sua organização
um ciclo que perpetua a dor, esgotando a vita- em percepções que se estruturam as represen-
lidade e instalando o sofrimento psíquico, que tações mentais e que se organiza inicialmente o
contribui mais ainda para a intolerância à dor. pensamento. Este processo desenvolve-se fun-
DOR sar na dor como um fenómeno psicossomático, damentalmente na ancoragem do corpo e na
Neste sentido, não podemos deixar de pen-
necessária ancoragem interactiva, isto é, na re-
20 em que a comunicação entre soma e mente e lação com a mãe que funciona como tradutora