Page 22 Volume 17 - N.3 - 2009
P. 22



J. Boavida: Dos Gestos Externos aos Movimentos Internos: (A)pesar da Dor
das sensações e impressões corporais e emo- pensamento reumático, falho de movimento, in-
cionais do bebé, atribuindo-lhes sentido, valor capaz de transformação.
afectivo e comunicativo, nomeando os estados Numa situação de intolerância mental à dor, o
emocionais experienciados. corpo será sacrificado no lugar da mente, já que
Tocarmo-nos, vermo-nos, sentirmo-nos, pro- a somatização continua a ter como principal ob-
varmo-nos e ouvirmo-nos são condições prévias jectivo a sobrevivência.
indispensáveis antes de sermos capazes de nos A dor crónica funciona ao serviço da defesa
pensarmos. do colapso mental, na procura da sobrevivência
No entanto, o bebé pode sentir o tempo de dife- psíquica ou noutras palavras, eu sofro, logo exis-
rentes formas na relação com o seu próprio corpo. to. A dor surge então como um último reduto da
Pode sentir como espera, como tensão, como in- afirmação da identidade, eu existo nem que seja
1
cómodo ou como mal-estar somático. Sabemos pela dor .
também que é através do adiamento da satisfa- Assim como os movimentos espontâneos e
ção que as necessidades se podem elaborar em vivos se afastam do corpo, inibidos pela dor fí-
desejos, constituindo-se como mentalizações, sica, o aparelho mental afasta-se da realidade
essenciais ao pensamento . sempre que há intolerância à dor mental, tendo
5
Por outro lado, é através dos órgãos sensoriais como objectivo a fuga, o escape à frustração.
e da consciência a eles ligada, tendo como ob- Como poderemos renunciar à dor física, se
jectivo a pesquisa e a memorização dos dados intuímos que essa renúncia nos remeterá para a
da realidade externa, que se inscreve a dor, o condição de desamparo original ou para as suas
desamparo como marca impressa no corpo, representações?
como história e memória de dor. A transformação de dor física em dor mental e
3
Assim, no lugar da falta ou da falha, tolerada vice-versa depende do grau de tolerância à dor .
ou intolerada, organiza-se ou não o pensamento, Se a dor comunica na procura da relação, seja
sendo que é através deste que podemos tolerar através do corpo ou da simbolização, nós, téc-
o desprazer e tentar através da actividade men- nicos de saúde somos objectos dessa procura.
tal modificar a realidade frustrante. A maioria das pessoas que procuram cuidados
No doente com dor crónica instala-se a lingua- de saúde fá-lo porque tem alguma espécie de
gem da dor, numa paralisia ou num movimento dor. Dessa forma somos confrontados, quer quei-
dorido, à procura de sentido. Mais uma vez a ramos quer não, com a dor física ou mental dos
dor impele a procura do Outro, procura uma nossos doentes.
escuta que a contenha e a torne suportável, que A questão da relação enquanto espaço conti-
a traduza e que coloque o doente como sujeito nente do sofrimento foi abordada pelo médico e
da dor e não como sujeitado à dor. filósofo Areteo de Capadócia entre 100 e 200 anos
Tal como na metáfora do bebé, é ao nível das d.C., que referiu que em resposta à frustração
sensações que se organiza este jogo de movi- provocada pela dor prolongada e incurável dos
mentos internos entre corpo e mente, entre dor doentes portadores de doença grave e irrever-
física e dor mental. Na intolerância à dor, a fron- sível os médicos deveriam usar a compaixão .
2
teira entre soma e mente mobiliza-se como uma Assim, na relação com os nossos pacientes
fortaleza defensiva que impossibilita a elaboração temos dois caminhos: a fuga à dor ou a trans-
psíquica da dor, paralisa o pensamento, assim formação da dor. Estes são movimentos distin-
como analogamente a dor crónica paralisa tam- tos, mas os possíveis para determinado doente,
bém o movimento físico. em determinado momento, na tentativa de lidar
Para a elaboração psíquica da dor é neces- com a sua própria dor.
sária a mediação do pensamento como meca- A transformação da dor depende primaria-
nismo de transformação do pesar da dor em mente da nossa disponibilidade para a relação
apesar da dor, transformação da dor do desam- com o doente e da capacidade de nela reconhe-
paro em sofrimento. Não existindo esta possibi- cermos a experiência emocional dolorosa que
lidade, pode dar-se o colapso da vida mental ou ele nos comunica. Por outras palavras, se esti-
a descarga paralisante da dor no corpo. vermos disponíveis para perceber que a dor
Dor no latim, dolor-doloris, significa romper, pode ser a sinalização do amor que não se tem,
rasgar, abrir fenda, enquanto sofrimento do latim ou não se percebe como tendo.
sufferentia, suferere, significa suportar, tolerar, Quando a fuga à elaboração da dor ocorre na
3
aceitar . relação cuidadora, pode ser sintoma da indispo-
Assim, o corpo rasga-se, abre uma fenda, nibilidade para reconhecer a experiência emo-
quando o paciente não tem capacidade de su- cional dolorosa do doente. Tal supõe uma expe-
portar, quando não encontra continente para o riência emocional dolorosa, a maior parte das
seu desamparo. Paradoxalmente, o sofrimento é vezes saturada na nossa própria dor, não exis-
assim uma maior capacidade de contenção e ela- tindo espaço relacional continente para o sofri-
boração mental. Muitas vezes a intensidade da mento do doente.
dor concorre para o medo de a sofrer, pelo que Para o movimento de transformação da dor te- DOR
incita à evitação dessa experiência emocional, mos de estar disponíveis para o caminho feito a
quase como um pensamento inflamado ou um dois, marcado pela dor da realidade, mas também 21
   17   18   19   20   21   22   23   24   25   26   27