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Dor (2012) 20
Foi assim que cheguei à decisão de apresen-
tar a minha própria perceção de dor nas duas
experiências motoras mais importantes da mi-
nha vida: por um lado, ter sido atleta de kung fu
de alta competição e, por outro lado, ter cami-
nhado 800 quilómetros, sozinha, desde França
até Santiago de Compostela. Estes dois lados © Permanyer Portugal 2012
de uma mesma moeda foram trazendo à minha
consciência significados diversos para a expe-
riência de dor que vivemos quando estamos em
movimento de grande intensidade e esforço. Como
era esperável, esta tomada de consciência foi cau-
sando, pouco a pouco, o seu impacto na minha
atuação profissional. Foi modificando o meu
olhar e a minha escuta, quer em relação ao alu-
no que estava sob a minha formação, quer em Figura 1. Demonstração de kung fu durante as Olimpíadas
relação à pessoa com a qual este meu aluno ou de Pequim (adaptado de http://2008.people.com.cn/).
aluna iria intervir.
O que pretendo, a seguir, é compartilhar com
o leitor alguns trechos desta caminhada que,
entretanto, continua. (Peru), tricampeã internacional (Estados Unidos
da América [EUA]) e campeã mundial (China).
As competições não eram de combate, mas de
A perceção de dor na prática do kung fu demonstrações, individuais, de sequências de
Depois de vários anos a saltar de um despor- movimentos que imitavam animais (como a ser-
to para outro e a praticar um pouco de tudo pente, a garça, o tigre e outros) e que poderiam
(natação, ballet clássico, ginástica artística, vo- ser feitas com ou sem o manuseio de armas
leibol, jazz, etc.), deparei-me com o kung fu, aos (bastões, lanças, espadas, punhais, etc.). O pa-
23 anos de idade. Na época, vivia no Brasil, drão destas competições é parecido com o da
cursava o Mestrado em Educação e tinha inicia- ginástica rítmica: o atleta entra na área de com-
do a carreira como professora universitária. Ado- petição com a pontuação máxima, faz a sua
rava a atividade física e desportiva, mas cansa- apresentação, os árbitros descontam pontos a
va-me rapidamente quando não via sentido em cada erro e, no final, ganha quem tiver mais
repetir movimentos sem qualquer significado ou precisão e falhar menos. Na figura 1, por exem-
em copiar o modelo de um professor sem que a plo, vemos a cena de uma atleta de kung fu a
sequência de movimentos tivesse um «porquê». manusear uma espada, durante os Jogos Olím-
A malhação dos ginásios na busca de um corpo picos de Pequim – China, 2008.
perfeito – usando uma forma pejorativa e exage- Chegar a este nível de especialização tem as Sem o consentimento prévio por escrito do editor, não se pode reproduzir nem fotocopiar nenhuma parte desta publicação.
rada de dizer – só recrutava a mente quando era suas recompensas… e o seu preço.
preciso contar quantas vezes já se tinha repetido Desde o início aprendi que o objetivo maior do
o mesmo exercício. A tomada de consciência do kung fu era a harmonia ou o equilíbrio dinâmi-
movimento, a meditação e a consciencialização co entre mente e corpo, entre pensamento e
corporal não tinham lugar nestes ambientes ação, entre razão e emoção. Acontece que para
(pelo menos não nos que eu frequentei). Com o os reles mortais como eu, atingir esta harmonia
kung fu, julguei que tivesse descoberto o casa- começa por destinar um papel muito mais domi-
mento ideal entre corpo e mente. As sequências nante à mente do que ao corpo, sobretudo com
de movimentos que aprendia tinham uma histó- a precisão de movimentos e o esforço físico
ria, os gestos que fazia tinham um significado necessários para se atingir tamanho grau de
próprio, sempre ligados à história da China, à mestria. Este controlo da mente passava-se tan-
cultura chinesa e/ou à história e cultura do pró- to nos momentos de exercício físico, quanto nos
prio kung fu. Toda aula era finalizada com a momentos de meditação e treino mental.
discussão de um provérbio chinês e a relação Neste contexto, a dor era como se fosse uma
entre este provérbio e os movimentos praticados fraqueza da mente quando não conseguia ignorar
ou a vida quotidiana. Para compreender melhor
a arte, tínhamos aulas de Chinês e conhecíamos
melhor o pensamento chinês com um lama bu- *Vide tese de doutoramento sobre o ensino de Kung Fu em
dista que oferecia palestras abertas aos alunos escolas regulares em Lima, Luzia (2000). «O Tao da Educa-
que quisessem participar. ção: a Filosofia Oriental na Escola Ocidental». São Paulo,
Rapidamente, o kung fu se tornou o meu inte- Editora Agora. Vide exercícios para o desenvolvimento da
resse de eleição, influenciando o desenvolvimen- consciência corporal em alunos de Psicodrama Pedagógico
em Lima, Luzia, Kung Fu, psicodrama e educação: o expressar
DOR to de todas as outras atividades com as quais da espontaneidade através do T’ ai Chi, in Puttini, E. E Lima,
estava envolvida*. Com cinco anos de prática, era
18 pentacampeã brasileira, campeã sul-americana L. (orgs.) (1997) Ações Educativas: vivências com psicodra-
ma na prática pedagógica. São Paulo, Editora Agora.