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Dor (2012) 20
pontos de contacto nestas duas experiências.
Ambas podem ser consideradas incomuns, ou
pelo menos não são tão usuais como jogar fute-
bol com amigos ou caminhar na praia sozinho.
Ambas exigem um esforço físico significativa-
mente elevado, o que implica muita disciplina e
a determinação necessária para conquistar um © Permanyer Portugal 2012
campeonato ou chegar ao final do caminho.
Cada qual, à sua maneira, leva a uma refinada
tomada de consciência do corpo, do movimento
e, porque não, da dor. E é justamente neste
ponto que estas duas experiências, com espa-
ços, tempos e contextos tão diferentes, parecem
ter os seus pontos em comum.
É verdade que a dor que experimentei duran-
te estas actividades foi uma dor resultante do
esforço necessário para atingir os objetivo tra-
çados. Mas também, e por isso mesmo, era uma
Figura 3. Cena de ajuda no Caminho de Santiago de dor que se integrava num contexto maior de
Compostela (adaptado de http:// vocaminhando.
wordpress.com). desafio. Este desafio significava que, para atin-
gir os objetivos a que eu me tinha proposto,
inicialmente a dor era um meio, uma estratégia,
algo de instrumental para chegar a um fim. Se-
guindo-se a esta etapa (ou seja, depois de a dor
espontaneamente ofereciam o que tivessem de ser usada como um instrumento), a sua aceita-
remédio ou de ajuda (Fig. 3). ção, o seu controlo e o meu domínio sobre ela
No Caminho, o cuidar da dor parecia brotar acabaram por fazer parte dos objetivos que eu
do chão. persegui, numa e noutra experiência. Aqui, o
Cheguei a Santiago com os pés inchados, provérbio inglês: «no pain, no gain» («sem dor,
nenhuma bolha e um sentimento magnífico de não há ganho») ilustra bem esta indissolubilida-
missão cumprida. Era anónima, não tinha recebi- de entre a dor-meio e a dor-objetivo.
do título nenhum nem tinha acrescentado nenhum É claro que estas reflexões não permitem con-
grama em medalhas aos seis quilos da minha cluir ou generalizar o que quer que seja em re-
mochila. Foi assim que passei dois dias a vague- lação à dor em si. Enquanto relato de experiência
ar pela cidade, sem conseguir completar o ritual ou «autoestudo de caso», permitem tão-somen-
típico do peregrino: dar um grande abraço na te descrever uma vivência pessoal e comparti-
imagem do Santo e fazer-lhe um pedido. Afinal, lhar as consciencializações que dela decorrem. Sem o consentimento prévio por escrito do editor, não se pode reproduzir nem fotocopiar nenhuma parte desta publicação.
pedir o quê se eu só tinha que agradecer? Trata-se de uma vivência que se mistura com a
O impacto desta experiência na minha vida minha personalidade e que em alta medida é
pessoal e profissional foi também visível. Passei determinada pela minha motivação pessoal. As-
a chegar até ao meu limite em tudo o que me sim, poderia dizer que a aceitação e o domínio
propunha a fazer, mas passei também a tentar da dor dependeram da dimensão dos objetivos
nunca superá-lo. Procurei ver aquilo que realizo a que eu me propus. De acordo com estes ob-
não mais como um ponto para algo mais ou jetivos, a dor que inicialmente era um inconve-
melhor, mas como uma fotografia – um momen- niente, transformara-se numa componente inte-
to de realização que é o que é e que chegou no gradora destes mesmos objetivos. Neste sentido,
melhor onde pôde chegar. Assumi que superar a dor tornou-se até, e paradoxalmente, uma fon-
a dor ou atingir um objetivo depende da decisão te de poder.
interna de cada um, conjugada com uma infini- A dor que ignorei, que controlei, que superei
dade de fatores internos e externos à pessoa, no kung fu era fonte de poder para me empe-
onde incluo a sorte e a determinação. Sobretu- nhar mais e mais na especialização dentro des-
do, percebi que não é preciso ser «super-huma- ta arte. A dor que acalentei, que assumi e que
no» apenas para superar a dor e avançar – é senti no Caminho de Santiago era fonte de poder
preciso também, ou até mais, para assumir a dor para continuar lentamente o caminho e, passo a
e parar. passo, chegar a Compostela.
Hoje, a dor superada e a dor respeitada con-
Revisitando o kung fu e o Caminho Francês vivem no meu dia a dia, às vezes empurrando-me
para o inconformismo e para a criação do que
de Santiago de Compostela lá vem, outras vezes acolhendo-me na admira-
Olhando hoje para a prática do kung fu e a ção e no aprimoramento do que já foi.
DOR peregrinação pelo Caminho Francês de Santia- às 12 horas e 44 minutos.
Hoje, em Lisboa, no dia 22 de janeiro de 2012,
go de Compostela, acabo por identificar alguns
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