Page 20 Volume 20 - N1 - 2012
P. 20
L. Lima-Rodrigues: A Prática de Atividades Físicas e Desportivas Intensas e o Significado de «Dor»: um «Autoestudo» de Caso
abandonei também a prática regular do kung fu.
Continuava a busca interior pela harmonia men-
te-corpo porém, agora, procurando trilhar cami-
nhos bem mais suaves.
A perceção de dor no Caminho de Santiago
de Compostela © Permanyer Portugal 2012
Caminhar, sozinha, 800 quilómetros, desde
França até Santiago de Compostela, à partida
não parece ser nada suave. De facto é uma
tarefa exigente, de grande intensidade e com
algum risco. Mas justamente por ter o ponto de
chegada tão distante é que o Caminho de San-
Figura 2. Demonstração de controlo da dor, por Monges tiago tem que ser feito de forma tão suave. Se
Shao Lin – China, 1995 (Fonte: acervo pessoal de fotos não for assim, há que interromper a jornada e
da autora). «adeus» ponto de chegada.
Escusado é explicar o que é o Caminho de
Santiago para um leitor que supostamente tem
Fátima em território nacional. Mas talvez valha a
os indícios do corpo. O mesmo valia para o pena dizer que realizei o caminho pelo desafio
cansaço, a fadiga, o stress… a mente não esta- que ele apresenta, pela história que o caminho
va autorizada a processar estas informações ou, envolve, pela rota do melhor que há do Români-
se processasse, era apenas para identificar as co (e porque não dos vinhos e da culinária), pela
sensações corporais – nunca para ceder a elas. oportunidade de estar comigo (e só comigo)
Afinal, a função do kung fu é gerar «super-ho- pela primeira vez na vida, pela oportunidade de
mens», inabaláveis, imbatíveis, que fossem ca- conhecer pessoas do mundo todo que fazem o
pazes de controlar a dor. Por isso, é comum que caminho por motivos que variam dos mais espi-
os campeonatos incluam shows demonstrando rituais até o mais puro fitness.
as habilidades que os «super-homens» conse- Ainda não tinha cruzado os Pirenéus e já tinha
guem desenvolver como resultado deste tipo de percebido que chegar a Santiago nada tinha a
conexão mente → corpo (Fig. 2). ver com superar, ignorar ou controlar a dor.
Que fique claro que eu não cheguei ao ponto Compreendi, rapidamente, o significado do lema
de participar destes espectáculos! Partia alguns do Caminho: «peregrino anda o quanto pode,
tijolos e nada mais. Mas a intensidade desta não o quanto quer».
experiência de superação da dor, seja como A vivência, aqui, era diametralmente oposta à
atriz ou como espectadora, influenciava forte- que tinha experimentado no kung fu. Afinal, quem
mente a minha forma de pensar e de ser. se propõe a fazer o Caminho tem que se assumir Sem o consentimento prévio por escrito do editor, não se pode reproduzir nem fotocopiar nenhuma parte desta publicação.
Pessoalmente, procurava superar os meus li- como «humano» – nem mais, nem menos. Quem
mites em tudo o que me propunha a realizar. procura se sobrepor às limitações de ser «huma-
Qualquer coisa que fizesse representava apenas no», não consegue terminar o caminho. Enquan-
um ponto de apoio para a realização de algo to peregrina, percebi que a dor tinha que ser
mais, com mais precisão ou melhor. Como pro- ouvida, respeitada, assumida, cuidada... Por
fessora universitária ou de kung fu, as aulas isso, ao menor indício de dor, a única resposta
dadas eram autoavaliadas a fim de descobrir plausível era parar – imediatamente. Talvez uma
como tornar o meu ensino mais eficaz e levar o das maiores aprendizagens que fiz durante o
aluno a aprender mais e melhor. Como atleta, caminho foi olhar para a dor com consideração
controlava e superava a dor quase todos os e respeito, assumindo que ela existia.
dias. Costumava dizer aos meus alunos da área Durante o Caminho, presenciei inúmeras de-
do desporto: «eu sei o que é chorar de dor sem monstrações de cuidado com a dor própria e do
abandonar o exercício», «sei o que é ter o corpo outro. Pessoas paradas a ajeitar as meias ou a
a implorar e a mente a fazer-se de surda ou prender melhor as alças da mochila para dimi-
cega». Naquela altura (com aquela idade e com nuir a dor nos pés ou nas costas; havia quem
aquela experiência), julgava que superar a dor se oferecesse para carregar alguma coisa para
ou atingir um objetivo de vida dependesse ex- ajudar a diminuir o peso e a dor do outro; mal
clusivamente da decisão interna de cada um. alguém via o outro parado e logo perguntava se
Com uma montra de troféus e medalhas, via- estava tudo bem, se precisava de ajuda; nos
gens internacionais frequentes, prestígio nos albergues, quando alguém insinuava ter uma
meios de comunicação e um currículo desporti- dor qualquer, imediatamente surgiam remédios
vo premiado em diversas instâncias do Brasil, e pensos de todos os lados; quando algum pe-
abandonei as competições aos 31 anos de ida- regrino estava a cuidar de dores musculares ou DOR
a
de, após conquistar a 4. medalha num mesmo bolhas nos pés (o que era comum) ou de algum
campeonato brasileiro. Pouco tempo depois outro ferimento (muito mais raro), os demais 19