Page 22 Volume 20 - N3 - 2012
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Dor (2012) 20

Eros Frente a Frente com a Dor
© Permanyer Portugal 2012

(Diálogos de Eros com a Dor)


Cristina Catana





Introdução pleno desenvolvimento da ciência e matemática,
«Penso que o homem não tem possibilidade entre os sécs. I e IV d.C., em Benares.»
de esclarecer e esclarecer-se melhor, se não Com este livro numa mão, procuro um outro
dominar o que o aterroriza.» do autor Octavio Paz, «A Chama Dupla – Amor
Georges Bataille e Erotismo», que nos diz: «O homem é um ser
incompleto. Mal nasce e logo foge de si mesmo.
Para onde vai? Anda em busca de si mesmo e
Encarar a dor e o amor só acontecerá se es- persegue-se a si mesmo sem cessar. Nunca é o
tivermos a encarar o próprio homem. que é, mas o que quer ser, o que se busca; logo
A dor e o erotismo movem o homem para o que se alcança, ou crê que se alcança, despren-
questionamento dos seus limites e do seu mundo de-se de novo de si; desaloja-se e prossegue a
interno. sua perseguição.»
O amor e a paixão mergulham nos mistérios Trabalhando diariamente com pessoas que
(m-hister-ios) da vida humana. Doravante, os padecem de dor crónica, revela-se que as do-
mistérios oferecem-se para a sua decifração. res do corpo (não) desmentem a roda do tem-
Decifração que, na verdade, é um ir decifrando po: a inquietação da vida, a inquietação da
pela sua natureza criadora de significados que morte.
não se findam em si mesmos. Significados cuja O corpo raramente mente e oferece-se para
parte elucida e uma outra cria um novo mistério. se tornar mente.
O mistério fecunda e resiste ao tempo. Não es- A pessoa vive, sem biombos, os limites da
gota a sua existência. O mistério do amor é um vulnerabilidade, o caminho das escolhas, dos
sobrevivente ao tempo-Cronos e ele mesmo tem acasos, sacrifícios, sonhos… a sua condição
sido o motor da humanidade. humana. Sente-se magoada no seu centro – na
Com esta ideia que o amor revoluciona o sua identidade. Traída pela condição corporal,
pré-conceito do tempo, procurei uma amiga, aliena-se, eventualmente. Perde o pé e o rosto. Sem o consentimento prévio por escrito do editor, não se pode reproduzir nem fotocopiar nenhuma parte desta publicação.
senhora de 80 anos de idade, para lhe perguntar Refém de algum anonimato, perde a essência
como tem visto e vivido as dores do amor. Res- do desejo e vive a falta e na falta.
ponde-me da seguinte maneira. É preciso coragem para enfrentar a dor. Mas
Contraria a minha apressada curiosidade, e, também é preciso coragem para enfrentar a pai-
com a surpresa e cumplicidade, retira da sua xão e o amor.
estante, calmamente, um pequeno livro – do Dor, paixão e amor são transgressivos. Têm a
género livro de bolso – o «Kama Sutra». «Toma! força da revolução. Mudam visões, lógicas, rea-
Empresto-te este livro. É capaz de te dar jeito. lidades e até identidades. Agitam preconceitos
Sabes, este livro não pode ser lido como um políticos, raciais, morais.
manual de ginástica sexual. Só o poderás ler
como o livro da vida.» Geram novos caminhos e novas inquietudes.
Pego no livro e viro-o para ler na sua contra- Não me refiro ao «amor narcísico» que de
capa a breve nota do editor: «O Kama Sutra de viço e verdade tem pouco, e de hipocrisia terá
Vatsiyana é leitura obrigatória para todos os que demais.
creem que o prazer é um dos sérios propósitos Falo do amor-paixão, que surpreende o ho-
da vida. O autor Vatsiyana viveu numa esplen- mem e o surpreende por não ser esperado nem
dorosa época da Índia, do Império Gupta, em acautelado.
Refiro-me ao encontro. E encontro é desnuda-
mento.
Uma outra questão se impõe: não será que
vivemos numa contemporaneidade onde se re-
Psicóloga Clínica da Unidade de Dor ceia mais o encontro com o outro?
Hospital Garcia de Orta DOR
Almada A dor de não se ser quem é, com o anal-
E-mail: cristinacatana@netcabo.pt gésico das máscaras bidimensionais. Falta 21
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