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M.S. Afonso, F.L. Moreira Neto: As Células Gliais da Medula Espinhal e a Dor Neuropática: Implicações no Uso de Opióides
Introdução regulação da força sináptica e plasticidade, e na
iniciação dos mecanismos de sensitização central .
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O processamento da dor está longe de ser Qualquer que seja o estímulo que desencadeie
mecanisticamente simples. Consiste num sistema a ativação destas células gliais – seja neuropa-
dinâmico, e por vezes redundante, que envolve tia, lesão ou inflamação dos tecidos periféricos,
várias vias e etapas, e no qual podem ocorrer al- ativação imune na medula espinhal, morfina ou
terações da mensagem transmitida a qualquer outros fármacos crónicos – isso provoca a liber- © Permanyer Portugal 2012
tempo ou nível desse sistema . A visão tradicional tação de substâncias que originam alterações
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é a de que a dor resulta da ativação de neurónios que exacerbam a dor, usualmente manifestada
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aferentes primários específicos, os nociceptores, sob a forma de alodinia e hiperalgesia . Para
cujos corpos celulares se situam em gânglios ra- além destes tipos de células gliais, existem ou-
quidianos dorsais (GRD). A deteção do estímulo tros tipos celulares não-neuronais implicados na
nóxico é feita no terminal periférico do nociceptor, modulação da dor, tais como as células endote-
uma região especializada cuja função consiste na liais, fibroblastos, mastócitos, macrófagos e oli-
translação da energia/informação química em po- godendrócitos (outro tipo glial do SNC), só para
tenciais de ação. As mensagens sensoriais são nomear alguns. No entanto o seu estudo nem
então transmitidas para o corpo celular do noci- sempre tem sido fácil devido à escassez de
ceptor, e deste para o seu terminal central que marcadores da sua ativação que sofram sobrer-
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sinaptiza com neurónios de projeção localizados regulação . Por isso, esta revisão irá considerar
no corno dorsal da medula espinhal. Desde a somente a microglia e os astrócitos e focar-se-á
medula espinhal, numerosas vias ascendentes essencialmente nos mecanismos envolvidos na
(normalmente fibras do sistema ântero-lateral) dor neuropática que ocorrem ao nível da medula
transmitem a informação para núcleos do tronco espinhal, deixando por discutir os eventos ocor-
cerebral e tálamo, acabando esta por chegar a ridos na periferia e no SNC supraespinhal.
áreas corticais, onde a perceção da dor é inte- Existe alguma esperança vigente de que com
grada. Para além disto, a informação que é o conhecimento adequado acerca dos mecanis-
transmitida ao córtex cerebral é ela própria mo- mos em que a glia influencia a dor, estes pos-
dulada por várias vias descendentes inibitórias sam ser um alvo farmacológico mais eficaz no
e facilitadoras que terminam na medula espinhal, tratamento da dor.
assim como por interneurónios espinhais inibitó-
rios . Quando a lesão primária ou inflamação é
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prolongada, esses nociceptores sofrem uma Dor neuropática
estimulação continuada, que resulta em dor pa- Qualquer tipo de sensação dolorosa crónica
tológica pela ocorrência de mecanismos de e/ou recorrente que dure para além de três me-
plasticidade e sensitização periférica e central. ses e que tenha uma duração imprevisível é
Típicas manifestações de dor crónica incluem considerada como patológica por si mesma .
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hiperalgesia, isto é, uma resposta aumentada a Ao contrário da dor fisiológica (também denomi-
um estímulo que é normalmente doloroso devido nada de aguda), que constitui um aviso contra Sem o consentimento prévio por escrito do editor, não se pode reproduzir nem fotocopiar nenhuma parte desta publicação.
a uma diminuição do limiar de dor, e alodinia, o perigo, impelindo o organismo à autoproteção
definida como dor resultante de um estímulo que e recuperação, a dor patológica não tem qual-
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é habitualmente inócuo . Sendo assim, a dor quer papel biológico aparente.
patológica foi tradicionalmente vista durante Um dos tipos de dor patológica é aquela que
muitas décadas como sendo criada e mantida tem uma origem neuropática, definida pela In-
somente pela atividade de neurónios. E como ternational Association for the Study of Pain
tal, o desenvolvimento de analgésicos tem-se (IASP) como sendo uma dor iniciada ou causada
focado em alvos neuronais. No entanto, e parti- por uma lesão primária ou disfunção do sistema
cularmente no caso da dor neuropática, a eficá- nervoso periférico (SNP) ou do SNC . Pode ser
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cia destas opções terapêuticas, quando existe, causada por um número variado de diferentes
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tem sido comprovadamente modesta , deixando lesões, tais como infeções, traumas, anomalias
a maioria dos doentes com sintomas inadequa- metabólicas, quimioterapia, cirurgia, radiação,
damente controlados e má qualidade de vida. neurotoxinas, compressão de nervos ou infiltra-
Ficou claro para os investigadores que ainda ção de tumores, todas elas resultando numa
havia muitos detalhes no processamento da dor sensação dolorosa que continua para além do
que não estavam bem esclarecidos e que pode- período de cura esperado para o tipo de lesão
riam envolver outros tipos celulares, para além que a origina . Pode mesmo prevalecer durante
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de neurónios. anos sem que a sua causa seja bem estabele-
Desde que Garrison, et al. demonstraram que cida ou tratada 2,11 . As síndromes clínicas dolo-
os astrócitos poderão ter um possível papel nos rosas ocorrem em proporções epidémicas em
mecanismos da dor crónica , que as células todo o mundo, estando estimado que cerca de
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gliais, em particular os astrócitos e a microglia, um sexto da população mundial seja afetada .
têm sido um foco de atenção crescente por parte É bastante provável que a frequência dessas DOR
da comunidade científica. De facto, hoje sabe-se síndromes se eleve, dado o aumento de preva-
que estas células têm uma função importante na lência de doenças malignas e não-malignas nas 25