Page 31 Guia para o Tratamento da Dor em Contextos de Poucos Recursos
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dor e, por consequência, de danos físicos. A melhor dor comporta sempre os dois fatores – o somático e
aprendizagem ocorre quando estamos atentos e o psicológico – e esta dicotomização obsoleta deve
quando os conhecimentos adquiridos se associam a ser ultrapassada através da abordagem holística da
emoções fortes. No que diz respeito à dor aguda – e dor.
em particular quando o perigo provém do exterior –
esta ligação é extremamente útil, uma vez que o Interação entre fatores
comportamento de evitamento aprendido face à dor biológicos, psicológicos e
reduz drasticamente os riscos para a saúde. Quando
se trata de dor crónica, porém, evitar a atividade e o sociais
contacto social afeta o doente, levando-o a
concentrar-se quase exclusivamente na dor. Esta Uma conceptualização completa da dor
tendência conduz a um círculo vicioso de dor, falta crónica é complexa e deve considerar o máximo de
de atividade, medo, depressão e mais dor. fatores possível. Os profissionais de saúde a
trabalhar em dor não podem assumir uma atitude
Os doentes adotam ingénua, orientando-se apenas para um dos fatores.
frequentemente um modelo Se valorizarem simplesmente os aspetos
de dor somática psicológicos e negligenciarem a componente
somática, os doentes com perturbações mentais
(por exemplo, depressão ou ansiedade) não
Na medicina ocidental, a dor é receberão os cuidados de que necessitam; o facto de
frequentemente encarada como uma reação uma pessoa sofrer de uma perturbação mental não
neurofisiológica à estimulação de nociceptores, cuja significa que esteja imune a perturbações físicas e à
intensidade – à semelhança do calor ou do frio – dor a elas associada. Por oposição, se derem apenas
depende do grau de estimulação. Quanto mais forte atenção aos sintomas somáticos, porque são claros,
for o calor do fogão, mais intensa é, normalmente, a os doentes podem não receber cuidados
perceção da dor. No entanto, este processo psicológicos adequados; a ansiedade associada à dor
neuronal simples só se aplica à dor aguda ou à dor e o humor depressivo, os comportamentos
experimental, sob condições laboratoriais altamente desajustados relacionados com a dor e as
controladas, que duram apenas um breve período de comorbilidades psicopatológicas podem ser
tempo. Devido à forma como a dor é retratada na descurados.
ciência popular, os doentes tendem também a aderir De uma perspetiva psicológica, presume-se
a esta teoria leiga e ingénua. Estes são levados a que as perturbações associadas à dor crónica são
assumir pressupostos desfavoráveis como, por causadas por processos somáticos (patologia física)
exemplo, (1) a dor tem sempre uma causa somática ou por níveis de stresse significativos. Poderá existir
e basta continuar à sua procura, (2) a dor sem uma doença física, mas também um processo
qualquer causa patológica deve ser psicogénica e (3) funcional, como uma reação fisiológica ao stresse
psicogénico significa psicopatológico. sob a forma de tensão muscular, hiperatividade
Os médicos consideram os fatores vegetativa e aumento da sensibilidade dos recetores
psicogénicos como contributivos apenas se a da dor. À medida que a perturbação progride, as
etiologia da dor não puder ser suficientemente causas identificadas originalmente vão perdendo
explicada por causas somáticas. Nestes casos, importância e os mecanismos de cronificação
diriam, por exemplo, que a dor é psicológica vão ganhando prevalência. Os efeitos da
«predominantemente psicológica». Por dor podem então tornar-se fator de manutenção dos
consequência, os doentes têm receio de não ser sintomas.
levados a sério e continuam a insistir junto do As modernas técnicas de ressonância
médico para que encontre a origem física da sua magnética cerebral têm confirmado os pressupostos
dor. Esta situação conduz a uma dicotomia inútil de psicológicos acerca da dor e têm fornecido a base
dor somatogénica versus dor psicogénica. Todavia, a para uma melhor compreensão de como os fatores